O que é este Blogue?

Quando se junta uma amálgama de palavras, um conto ou um poema podem sempre emergir. A sua divulgação fará que não morram esconsos numa escura e funda gaveta. Daí que às minhas palavras quero juntar as de outros que desejem participar. Os meus trabalhos estão publicados sob o pseudónimo: "Lobitino Almeida N'gola". Nas fotos e pinturas cliquem nos nomes e acedam às fontes.

sexta-feira, dezembro 22, 2006

Dois Momentos

"Golden Moments"
(de John Trickett,
daqui)

Dois Momentos*

Tenho meus olhos fitos em frente
Onde mora o futuro,
E altos, erectos,
Bem por cima do Muro…

Sou como toda a gente:
Tenho momentos aflitos
E afectos.
E canto (produzo) e perduro,
Mesmo cheio de espanto…



*António Cardoso*
*(poeta angolano (1933-2006) 1/1/1972, cedido por Suzete Antão)

(Um) Copo de Vinho

“Frutos e vinho”
(Óleo sobre tela por Vera Lúcia F.;
daqui)

(Um) Copo de Vinho*

Bem, você já chegou e senta-se
Agacha-se num assento
Toma a refeição e acalenta-se
Num gole de vinho que mal entendo

Como pode uma poção
Dessas mudar-nos assim
Bater mais forte o coração
E se você se prende a mim

Copo de vinho
Um copo de vinho

*Noé Guill*
*(a nova poesia angolana; poema inédito, Março/2006)

segunda-feira, dezembro 18, 2006

Neve nocturna

"Depois de uma noite de neve"
(foto daqui)
.
Neve nocturna*

Sentindo na noite
O silêncio pesado das vítimas

De solidão

Regressar a casa, revolver um passado demasiado presente.
Inconstante, ainda assim.

As feridas que ardem,
Que jazem nos corpos em movimento

Num rodopio trôpego, soluçante.
Sempre só(brio).

Um expectante sobressalto desperta
Na acalmia passiva das mãos abertas
Esperando

Contando os dias
As noites

Em branco.

Como a neve cristalina que cobre
O negro do chão

Manchado de sangue.

E quando a estrada acabar?

*Orlando Gilberto Castro*
*(jovem estudante português; os novos autores da Lusofonia; poema retirado daqui.)

Haverá amanhã para nós?

"Tomorrow"
(Aguarelas de AnneKarin Glass)
.
Haverá amanhã para nós?*

Meu amor,
Pode ser que não haja amanhã para nós
Porém, anseio que saibas que estou a viver um momento muito feliz da minha vida
Se os nossos caminhos se separarem, lembra-te sempre do quanto te amo
É teu o meu coração
É teu o meu amor.

Sinto-te na minha pele
Sinto-te dentro de mim
Sinto-te na minha mente
Sinto-te nos meus lábios.

*Suzete Madeira*
*(moçambicana; poema inédito, Dezembro-2006)

sábado, dezembro 16, 2006

Desenraizados

"Rosa de porcelana"
(Foto do lobitanga Amílcar Branco, tirada
daqui)

Desenraizados*

Nesta terra refúgio
vazia da nossa identidade
estrangeiros os passos
e a vontade…
Alheio o rosto
das coisas alheias
que nos olham…
Hostil o cenário
que passeamos indiferentes
com olhos vidrados de peixes mortos
fora do aquário…


*Amélia Veiga*
*(Poetisa angolana nascida em Portugal; do livro “As Lágrimas da Memória”, ed. Chá de Caxinda, 2006)

segunda-feira, dezembro 04, 2006

Vivo só

"Viúva de Luanda"
(Acrílico, de Toia Nueparth
)[+]


Vivo só*

Vivo só neste canto espaço bonito e tropical

Vivo só neste canto banhado pelo Índico e abençoado pelo Criador

Vivo apenas com a lembrança próxima (e ao mesmo tempo distante) da tua existência.

Até quando? Até quando enganarei o meu coração?

Sim! Até quando continuarei a viver só?

Até quando continuarei a viver apenas com a lembrança próxima (concreta e ao mesmo
tempo abstracta) da tua existência.
.
[+]NOTA: A pedido do autor(a) da obra (pintura) que estava inicialmente aqui ("Alone", de Heather Bowring), a mesma foi retirada sob pena de procedimento criminal por uso indevido da citada obra. Porque as imagens disponíveis da (e na) Internet e desde que não digam, explicitamente, que o seu uso depende de autorização prévia e desde que mencionado a fonte (como estava) não devem ser considerado, penso, como crime, ainda assim, satisfiz a vontade do autor(a).

*Suzete Madeira*
*(moçambicana; poema inédito, Dezembro-2006)

Eterna sentinela

"Cosmogonia do Imbondeiro"
(Tela de Filomena Conquenão, 1989,
daqui)


Eterna sentinela*

Abandonado e só,
o Imbomdeiro,
figura milenária do sertão,
tem a dolorosa expressão
de quem foi condenado
por toda a vida
a sofrer na costa de África
o seu destino maldito.

Não conhece os milagres do amor,
e junto a si jamais teve o carinho
ou a ternura saudável
da mais humilde flor.

Imbondeiro desgraçado,
filósofo triste e pensativo,
filósofo da paisagem,
mártir e santo que alguém tivesse encontrado
no inferno de Dante
e conduzisse a este sol abrasador:

- Tu és a estátua gigante
da minha dor!

*Tomaz Vieira da Cruz*
*(poeta luso-angolano; poema da obra Quissange, ed. Lello, 1971)

domingo, novembro 26, 2006

Calçada do Cordeal

“Sem título”
(Tela de
Mário Cesariny na exposição “Arte Lisboa”)

Calçada do Cordeal*

Pequeno tambor orgia modesta
o lago tranquilo a descoloração
tintura de brancos e verdes floresta
o lago tranquilo a prostituição
candura doçura nos olhos em festa
mão no coração

A bola de vidro rola vis-a-vis
com as flores que altas são no jardim.
Há justos e réprobos porque o Senhor quis
vingar-se de nós porque sim.

*Mário Cesariny*
*(poeta e pintor português [1923-26/Nov/2006]; poema retirado
daqui e pintura daqui)

sexta-feira, novembro 24, 2006

Entre as dunas da cidade

“Mulher sentada”
(Desenho de José Redinha*)


Entre as dunas da cidade*

Leve mulher, vapor de água, colibri suspenso
no céu da minha boca, desde quando
beijas assim a flor selvagem do destino?

Frágil mulher, o mito que despertas
no meu peito abre caminho
rasgando a carne a golpes de paixão

E é essa dor que dói e não consinto
que deus algum venha apaziguar
que faz da tua noite a minha lua

Mmulher de areia, queria ser vento
voar baixinho e levantar tua saia
para arder entre as dunas da cidade.

*José Luís Mendonça*
*(poeta angolano; poema e desenho do livro “Logarítimos da alma, poemas de aMar”

Evasão Impossível

“Cela”
(Foto McMuza “
daqui”)

Evasão Impossível*

Minhas palavras são grades
DA MINHA CELA
onde vivo encarcerada
sem farda listrada
sem número,
sem grilhetas
desde que vivo este amor

minhas noites são brancas,
encompridadas,
silenciosas, sem tranquilidade
desespero e estremeço as grades
em busca estéril de libertação

Meus gritos já roucos
Feitos ecos
Nos teus tímpanos recheados de seixos,
Volto a escutar
Angustiadamente...

Os teus dedos,
Feitos lima
(Por compaixão?...por amor?....)
desgastaram-se nas grades
insubmissos, silenciando-se
impotentes, vencidos...

O destino cínico, imutável
condenou-me a fazer versos
para ninguém,
multiplicando dia-a-dia
as grades da minha cela.

*Suzete Madeira*
*(moçambicana; poema inédito, Novembro-2006)

Soltar é urgente

“Nevoeiro nocturno em Bellwether Farm”
(Foto de
Lady Farrier)

Soltar é urgente*

Urgente subir levitar
banir nevoeiros cadentes
de códigos
....................................velhos tão nossos.

Urgente entranhar a manhã
no verbo soltar-lhe um pedreiro
na luz
............................arrumar os destroços.

Neste hoje com séculos dentro
o pão já madruga amassando
as lêvedas fomes que escorrem
..................................................dos olhos.

*Fernando Alvarenga*
*(poeta português, poema do livro “Meus cantos de ainda”)

Kianda

“Sem título”
(Tela de Arlette Marques*)


Kianda*

Minha senhora sereia
Dona das águas
Jovem rainha zangada
Com pescador
Na dor.

Come do pão dos meus filhos
Bebe do meu vinho
E deixa-te enfeitar
Com a minha rede sem peixe.

Meu rendilhado
Está consertado
A chama do mar
É teu abraço
Minha rede dorme na areia
A chama apagada da casa
É minha fome.

*Filipe Zau*
*(poeta e investigador angolano; imagem e poema do livro “Encanto do mar que eu canto”)

segunda-feira, novembro 20, 2006

Nação Macua

“Mulher macua”
(Tela de
Patricio Serendero)

Nação Macua*

Todos os meus amigos sabem que nasci na Zambézia e que sou macua. Gosto muito desta minha condição.
Sou macua, pertenço a nação macua e gosto de o ser, sinceramente identifico-me completamente com as gentes desta nação, com o lugar, com os costumes, com o comer, com o viver; enfim Sou macua porque me sinto macua.
Incrivelmente hoje, ao receber uma chamada telefónica um amigo me disse: Estou na tua terra e chove aqui a cântaros. Fique radiante, tão radiante que repeti o que acabara de ouvir. Aí é? Está a Chover na minha terra?
Imediatamente obtive a seguinte resposta: Tua terra não, vives tantos anos fora daqui que já não pertences a este lugar.
Senti pela primeira vez que a nossa terra está enraizada em nós; é algo que trazemos num lugar recôndito mas sublime do nosso Eu. É que quando o meu amigo referiu que eu já não era filha da nação macua e já não pertencia mais aquele lugar, senti uma tão grande necessidade de reafirmar as minhas raízes macuas. E fi-lo veementemente: ao lhe ter dito que vivo em Maputo há mais de 20 anos, mas nada tenho haver com este lugar, nem com as suas gentes, nem com os seus costumes.
Disse-lhe que a minha terra é muito bonita igualmente as mulheres são muito bonitas, referi que na nação macua, as mulheres não são “loboladas” (dote pago pelos homens aos familiares da noiva para casar com uma mulher no sul de Moçambique) e os homens da minha nação, da (nação macua) são circuncidados e tem obrigatoriamente um rádio transístor, uma machamba (lavra) para a subsistência da família, sabem caçar, pescar, e partilhar.
Na nação macua Munherar (vergar a coluna e arrastar as duas mãos no chão em direcção ao velho, até que este a boa maneira macua te diga, fica a vontade) mas antes te pergunta pela tua família, pelo teu casamento, pela colheita e só então agradece o teu gesto e pede desculpa e insistentemente te diz põe-te bem. Fica a vontade, não é preciso estar assim.
Algumas pessoas em alguns lugares (nações) chamam a isso de "velhos e bons tempos", mas honestamente creio que esta bondade é produzida pela severidade experimentada! Quase todos passámos por dificuldades financeiras e a manutenção do básico da vida requer trabalho constantemente. Essa experiência comum produz dentro de grande parte da minha nação um senso de empatia de uns para com os outros. A polidez e a gentileza são muito mais comuns; os direitos da outra pessoa são grandemente respeitados. E, falando de respeito, as mulheres são consideradas damas. Os homens moderam o seu vocabulário quando vêem mulheres por perto e procuram ser cavalheiros, afastando-se ligeiramente do caminho como gesto de respeito ao encontrá-las na estrada, abrindo alas e cedendo lugares nas esteiras para que elas se sentem. Hoje, essas atitudes de cortesia são consideradas anacrónicas, se eu, esquecer que os tempos são outros e me atrever a esperar que me abras a porta ficarei plantada na espera. Perdoa-me amor, pensei que fosses um cavalheiro! Condescendência. Esta é uma palavra que seguramente é de difícil compreensão nos dias de hoje. Estamos muito atarefados correndo atrás das nossas ambições de ter dois carros (ou mais) na garagem e uma antena de TV que capte sinais de satélite! Se entrarem ladrões na casa do vizinho e fizerem uma limpeza lá - é problema deles. Acredita se quiseres, houve um tempo - não tão longe assim - quando as pessoas se respeitavam e se valorizavam. Fazíamos Qualquer sacrifício para nos ajudarmos em casos de necessidade. Hoje, ninguém está muito preocupado com os outros – estejamos bem ou mal! Ser mesquinho hoje é uma virtude, como resultado, poucas pessoas agora param para considerar o quanto Deus tem nos abençoado. Temos muito mais tempo livre do que tinham os nossos pais, proporcionado pelas novas tecnologias! Entretanto, em vez de aproveitá-lo, redobramos nossos esforços trabalhando em horas extraordinárias para ganharmos mais e podermos gastar mais! Uma pessoa famosa, cujo nome não me lembro, disse: "Não há esperança para o homem que já está satisfeito". Isso bem poderia ser o lema em algumas nações hoje. Corremos de um lado para outro, parecendo formigas que tiveram o seu formigueiro destruído, muitos privando-se do sono e outros voando no "piloto-automático" para decidir o que vão comprar a seguir. Poucos parecem satisfeitos com o que já têm e estão literalmente enlouquecendo e tentando adquirir tudo. Vês algo errado neste quadro? A revelação é que estamos no caminho para a destruição.

*Suzete Madeira*
*(Poetisa e contista da nova vaga moçambicana)



conto moçambicano 3: O Baú de Joana

“Baú-Cofre”
(Peça do séc. XVII, em madeira e ferro;
Brasil)

O baú de Joana*

Jordão casou-se com Joana e no dia do casamento Joana levou para sua casa nova um grande baú, e pediu para que Jordão respeitasse a sua individualidade e nunca abrisse o baú.
Durante 50 anos de casamento, apesar da curiosidade, Jordão nunca abriu o baú.
Na comemoração dos 50 anos, Jordão não aguentou e perguntou para Joana o que tinha dentro daquele baú.
Ela então resolveu mostrar para ele o baú. Ao abrir, Jordão viu U$60.000,00 e quatro mazambana do “reino”.
Curioso, ele perguntou por que as mazambana?
E ela então confessou:
"Toda vez que te traí coloquei uma zambana no baú". Jordão, no primeiro momento ficou chocado, mas, depois de meditar, disse para si mesmo: "Até que posso perdoar... quatro mazambana em cinquenta anos, significam uma traição a cada 12,5 anos".
Então ele perguntou o que significavam os 60 mil dólares. Foi quando ela disse:
"TODA VEZ QUE O BAÚ ENCHIA DE ZAMBANA, EU VENDIA".

«Mini – GLOSSÁRIO»
(Ma)zambana: Batata em 2 Idiomas de Moçambique: xi-Ronga (xidzônga) língua original do grande caMpfumo / maPutso (circa 1400 /1500 d.C) –, zambana (singular) = batata "europeia"; prefixo MA para o plural; em emakhuwa padrão de Muhipiti / Nampula: batata
Mazambana do "reino": batatas "europeias"
.
*João Craveirinha*
*(Poeta, contista e artista plástico moçambicano; Um dos textos do livro “Rir faz bem à saúde” a editar brevemente)

terça-feira, novembro 14, 2006

Canto para Angola

"Em tempos de paz"
(Acrílico sem tela,
João Inglês, 1991)

Canto para Angola*

Hei-de compor um dia
um canto sem lirismo
nem tristeza
digno de ti, ó minha terra.

Hei-de compor um canto
livre e sem regras
que de boca em boca vai partir
nos lábios dos velhos e meninos.

Será o canto do pescador
com todos os sons dos mar
com os gemidos do contratado
nas roças de São Tomé.

Será o canto de todos os dramas
do algodão do Lagos & Irmão
o das tragédias nas minas
da kitoka e da Diamang.

Será o canto do povo
o canto do lavrador
e do estudante
do poeta
do operário
e do guerrilheiro
falando de toda Angola
e seus filhos generosos.
(Assim se fez madrugada)

*Joffre Rocha*
*(poeta angolano; poesia publicada no Tantã Cultural, nº 234, 9/15-Nov-2006)

sábado, novembro 04, 2006

A casa dos 50!!!

"O Parto"
(Tela de Raul Indipwo)
.
A casa dos 50!!!*

Que início de Outono
tão chuvoso,
quase invernoso!
Mas hoje
um lindo dia nasceu.
Olha as crianças que lá fora
brincam!

Está um lindo dia!

Os cães correm,
os pássaros chilreiam
os gatos à janela espreitam
enquanto as crianças,
lá fora,
brincam,
correm,
cabriolam!

Está um lindo dia!

Outubro já lá vai,
entrando um Novembro ofertante
de um São Martinho estival,
antes de um Dezembro
nos jubilar com o Natal,
de Janeiro, o Inverno nos enfadar
e Fevereiro, o Carnaval nos sambar.

Mas até lá,
está um lindo dia!

As pessoas no jardim descansam,
as notícias põem em dia,
os livros devoram,
enquanto isso, as crianças lançam alegria.

Foi um início de Outono tristonho,
quase invernoso;
preparando o tempo,
a hora,
o móbil,
no adubar da metade da vida,
da idade da razão,
aquela segunda idade,
que em Novembro,
inexoravelmente,
e de forma ignóbil,
se apresta
para me consagrar.

E até lá…
Está um lindo dia!!!

*Lobitino Almeida N’gola*
*(feito em Lisboa, 30/Out/2006 para o dia de hoje que, por acaso, celebra os 50 anos de vida)

terça-feira, outubro 31, 2006

Memória

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“Desayuno”
(Acrílico em papel de
Alberto Rojo)


Memória*

Baloiçando nos escombros de teu itinerário
saberás que os gados constroem estradas.
E quando a mão deslizar pela margem
das cicatrizes que se afundam na noite
saberás que a tua mão viaja para a
colina dos dias sem escombros
e saberás que no berço da noite jaz a luz
drogada e ouvida pela cruz sobre quem viajaste.


*João Maimona*
*(poeta angolano, retirado
daqui)

Desligado

“Sem Título”
(Arte Makonde em tela de
Ntaluma, 2004)

Desligado*

Era bom se
amanhecesse
neste sossego
presente
sem pensar
no futuro
nem mesmo
no castigo
que o livro
evoca
era bom
se obedecesse
minha alma
sem ter que
obedecer
as estrelas
as árvores
e as raízes
era bom se
meu coração
cantasse
a canção
de liberdade
sem ter que recorrer
aos ancestrais,
ancestrais
escondidos
no embondeiro
ou talvés
neste ar impuro...
era bom
que olhasses
p’ra mim
como humano
não escolhido
mas também
humano de bem
como o infinito!


*Domi Chirongo*
*(poeta moçambicano, pseudónimo de Domingos Carlos Pedro, poema inédito, 2006)

Conto da vida real 7: Do enfermeiro Oliveira ao Lucas Lukamba

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“Pôr do Sol em África”
(Acrílico de
Andreia Barbosa de Melo, 2002)
.
Do enfermeiro Oliveira ao Lucas Lukamba*

A história, bem verdadeira e sentida, passa-se na então cidade de Nova Lisboa, em Angola, no fim da década de 60. O meu pai trabalhava na fábrica de cervejas da Cuca e era lá que eu ia ao médico, na altura o dr. Fonseca Santos. De quando em vez tinha de apanhar umas injecções. Até aqui nada de novo.
A enfermaria da Cuca era chefiada pelo Oliveira, já na altura em velhote que aliava o seu ar (era apenas isso) de poucos amigos a uma postura do estilo «aqui quem manda sou eu». E era mesmo ele que mandava.
Recordo-me que tinha pelo menos dois fillhos. Um era médico, de seu nome Freitas de Oliveira, que gozava de alguma fama em Angola, nem sempre pelos grandes sucessos clínicos. O outro era um conhecido “criador” de cães especiais. Especiais porque às vezes até os pintava para serem diferentes.
Mas, voltemos ao velho emfermeiro Oliveira.
Eu, enquanto paciente e na altura talvez com 13 ou 14 anos de idade, não gostava que fosse ele a dar-me as injecções. Já era difícil aceitar a espetadela, quanto mais ser feita por aquele rezingão de bata branca.
Uma dez vezes, e a partir daí foi remédio santo, disse-lhe perante o ar preocupado do meu pai:
- Não quero que seja você a dar-me a injecção. Quero que seja o Lucas.
O Lucas era um enfermeiro preto que, em tudo, era o oposto do Oliveira. Simpático, cordial e sempre disponível para aceitar as birras dos putos com uma enorme dose de paciência.
- Porquê o Lucas? Perguntou o Oliveira com um ar ainda mais tempestuoso do que o habitual. Antes que respondesse, acrescentou: Sabes que quem quem ensinou o Lucas a dar injecções fui eu?
- Sei, respondi.
- Então? Interrogou o Oliveira com um ar triunfal.
- Pois. O meu pai também me ensinou a jogar as damas e agora perde comigo, respondi com a lata inconsciente de quem diz o que pensa.
Daí para a frente, e não foram tão poucas quanto isso, passei a ter um enfermeiro privativo: o Lucas Lukamba.

*Orlando Castro*
*(jornalista angolano-português, conto também publicado
aqui, Outubro, 2006)

Vou Ser Senhor do Mundo

“Tempestade na Pradaria - Canadá”
(Tela em óleo de
Paiva Carvalho)

Vou Ser Senhor do Mundo*

Vou falar com o Pássaro-Rei,
vou-lhe pedir um favorzinho:
vou ver se ele me dá emprestado
sete penas brancas
para eu voar
e ir poisar no teto do mundo.

Se ele disser que sim,
estou garantido,
porque Capotona-Preta prometeu virar-me
dum passo para o outro,
em senhor da terra,
senhor das águas,
senhor dos céus,
senhor do Mundo.

Mas é se eu voar
com as sete penas brancas
e for poisar no teto do Mundo.

E porquê ele não me faz o favorzinho,
se lhe levo um punhado de milho
e se lhe digo: — Por favor?

*Jorge Pedro Barbosa*
*(poeta caboverdiano, citado
aqui)

Poema Ancestral

“Atlântida”
(Tela de
Sylvio Paiva, 2002)

Poema Ancestral*

Lembra os dias antigos
Em que cantavas a pureza
Na nudez dos teus passos e gestos
Ou dançavas na inocente vaidade
Ao som dos «babadok».
Relembra as trevas da tua inquietação
E o silêncio das tuas expectativas,
As chuvas, as memórias heróicas,
Os milagres telúricos,
Os fantasmas e os temores.
Tenta lembrar a herança milenar dos teus avós
Traduzida em sabedoria
E verdade de todos.
Recorda a festa das colheitas,
A harmonia dos teus Ritos,
A lição antiga da liberdade,
Filha da natureza.
Recorda a tua fé guerreira,
A lealdade,
E a ternura do teu lar sem limites,
Nos caminhos do inesperado
Ou no improviso da partilha definitiva.
Lembra pela última vez
Que a história da tua ancestralidade
É a história da tua Terra Mãe...

*Custódio T. Araújo*
*(poeta timorense,
daqui)

Sobre estas duras

“Complexidade”
(Tela de Ana Rita Vazquez, estampada
aqui)

Sobre estas duras*

Sobre estas duras, cavernosas fragas,
Que o marinho furor vai carcomendo,
Me estão negras paixões n'alma fervendo
Como fervem no pego as crespas vagas.

Razão feroz, o coração me indagas,
De meus erros e sombra esclarecendo,
E vás nele (ai de mim!) palpando, e vendo
De agudas ânsias venenosas chagas.

Cego a meus males, surdo a teu reclamo,
Mil objectos de horror co'a ideia eu corro,
Solto gemidos, lágrimas derramo.

Razão, de que me serve o teu socorro?
Mandas-me não amar, eu ardo, eu amo;
Dizes-me que sossegue: eu peno, eu morro.

*Manuel Maria B. du Bocage*
*(poeta satírico português)

O poeta

“Pilão”
(Acrílico sobre tela de
Tchalê Figueira, 2004)

O poeta*

Porque as flores florem e o flume flui,
e o vento varre a fúria vã das ruas,
eu desenfurno tudo quanto fui
e me corôo com meus sóis e luas.

Porque o vôo das aves é meu vôo,
e a nuvem é alcáçar que não rui,
paro a mó do pensamento onde môo
a vida, e abro no muro que me obstrui

a áurea, ástrea senda, a porta augusta.
Que me importa se a clepsidra corrói
as praças das infâncias em ruínas?

Poemas são meninos e meninas
ao sol do Pai, que tudo reconstrói.
Poeta é flor e flume em terra adusta.

*Fernando Mendes Vianna*
*(poeta brasileiro (1933-2006), poema retirado
daqui)

sexta-feira, outubro 27, 2006

Uma harmoniosa sociedade apícola

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"O criador de abelhas (Der Bienenfreund)"
(Óleo sobre tela de Hans Thoma (1839-1924) – 1863)


Uma harmoniosa sociedade apícola*(1)

[…] Eram seis horas da manhã. Chovia suavemente. Eram as primeiras chuvas de Setembro. As suas gotas finíssimas eram ainda tímidas, mas cristalinas, o que me encantava. Assemelhavam-se a pequenos cristais de diamantes, o que criou à minha volta uma atmosfera de melancolia que me convidou à reflexão sobre o que observava. Com efeito, estávamos no início de mais uma estação das chuvas. A transição que se operava de uma estação à outra fazia-se sem sobressaltos. Tranquilamente e com doçura. A terra molhada libertava um imenso perfume que purificava a minha alma, levando-me a um certo recolhimento. Era agradável a sensação de paz que me transmitia o quadro que tinha á minha volta. Uma profunda sensação de rejuvenescimento espiritual invadiu a minha alma.
À medida que os minutos passavam, procurei observar com mais atenção as plantas e as flores perfumadas que rejuvenesciam ao redor da minha casa de capim. Eram lindas as cores vivas das pétalas das flores que espalhavam o seu perfume pela floresta adentro, enquanto à minha volta ouvia o zumbir incansável de milhares de abelhas, que libavam atarefadas o suco das flores numa relação eterna de amor profundo. Na realidade, estas abelhas viviam seguramente num mundo mais justo, dentro do seu ecossistema. As relações de interdependência, que estabeleciam entre si, eram de facto construtivas e equilibradas concorrendo para a consolidação dos laços de cooperação que estabeleciam no seu seio durante este processo de produção das suas necessidades básicas.
Pensei profundamente no que observava e fiquei impressionado com o tipo de relações simples que as abelhas mantinham entre si, num quadro de estruturas complexas, decorrentes da sua divisão de trabalho. Era de facto uma lição que eu aprendia com os fenómenos simples da natureza. Talvez os homens pudessem aprender alguma coisa com o quadro que tinha diante de mim. Teríamos certamente relações humanas mais equilibradas. Este quadro proporcionou-me uma nova visão de vida, uma base de reflexão sobre o direito à vida e o valor dos equilíbrios sociais que devem reger as sociedades como substrato de fundamentação das relações humanas num mundo cheio de contradições, às vezes antagónicas, e em mutação permanente. O que observava era o ideal, mas utópico, dada a própria natureza humana […].

*Alcides Sakala*
*(político angolano; excerto do livro “Memórias de Um Guerrilheiro”, páginas 121 e 122, ed. Publicações D. Quixote, 2006 -
() título da minha responsabilidade)

terça-feira, outubro 24, 2006

O dia em que invejei meu presidente


"Sem título"
(retirado daqui)
.
O dia em que invejei meu Presidente*

Tenho prosa
publicada
em livro,
não tenho
poesia!
Mas sou poeta
desde
a primeira
hora,
sinto isso.
Se me perguntassem
o que gostaria
de ser
em Novembro?
Sem consultar
Wycliffe Jean
responderia
Presidente
de Moçambique,
só p’ra viver
o parto
de meus versos
em livro.

*Domi Chirongo*
*(poeta moçambicano, pseudónimo de
Domingos Carlos Pedro; poema inédito, 2006)

Lobito

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"Lobito"
(Foto de Berrones,
daqui)

Lobito*

Cidade de Angola
cidade litoral,
de tradições e belezas.
Tu,
que ontem eras uma língua,
um mangal,
és hoje
a sala de visitas,
desta Angola marginal.

A bela sala de visitas de Angola,
tropicalíssima,
por todos amadíssima.

És tu, minha cidade natal,
a bela e angolana cidade litoral.
Cheia de belezas
e tradições,
de tristezas,
alegrias múltiplas
e efémeras ilusões.

Cidade nada nos mangais
e no oásis de uma língua,
a Restinga,
eras,
e ainda podes ser,
além de sala de visitas,
a testa d’um famoso cavalo de ferro,
a salvação de longínquas terras à míngua.

Bela cidade que tu és.
Baía, portos, mar,
caminho de ferro;
belos bairros, campismo;
canas, salinas, flamingos;
Marços, belas moças, praias.
Para tudo isto,
três sílabas,
apenas:
LOBITO.

Lobito,
cidade de mangais e valas tortuosas,
dos belos flamingos rosados,
das grandes salinas,
alvas,
mal-cheirosas.
Lobito,
poema de luz e cor,
de alegrias, tristezas e dor.
Ontem, eras uma Restinga,
somente,
nada mais;
hoje, segunda cidade industrial.
Ontem, uma simples língua,
ora, a terceira cidade angolana,
segunda da Angola, litoral.
Bela terra,
filha querida da Restinga.

Tu és,
Cassequel, açúcar, Catumbela,
portos, caminho de ferro, mar;
Restinga, morros, baía, praia,
salinas e flamingos.
Sim,
tudo isto é a minha cidade.
Um belo miradouro
de belas e “Boas Vistas”.
Olha,
além,
lá ao fundo,
a Colina da Saudade, a Caponte e o Compão,
ali, o aeroporto, a Luz e São João.
Em baixo, a Canata e o Liro,
aqui ao lado, o Rádio e a Praia do Egipto.
Sim, por tudo isto,
uma palavra única:
LOBITO.

Bela cidade exuberante,
activa e orgulhosa,
tu és um longo poema
de luz,
de cor,
de alegrias e tristezas,
de ilusões,
de dor.
Oh bela cidade,
tu qu’és tudo isto,
e, certamente, muito mais,
diz-me, por favor,
qual a razão do poeta te desprezar
e nenhum belo poema te cantar.
Minha querida terra natal,
têm estes versos,
como única finalidade,
uma mísera prosa poética
te cantar.
Essa merecida homenagem
que os verdadeiros poetas
não te quiseram render.
Três sílabas, apenas,
tem esta cidade,
que nem ao então instituído poder,
alguma vez se vergou:
LOBITO.

*Lobitino Almeida N’gola*
*Luanda, Abril de 1974

quinta-feira, outubro 12, 2006

Anunciando um Poeta

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"Mulher a estender a roupa"
(tela de
Lívio de Morais)

Anunciando um Poeta*

A notícia
já circulava
nos bastidores
da cidade
das acácias
mas como que
a combater
o boato
cedo
certo jornal
anunciou
o renascimento
de um intelectual
talvez o número um
ou mesmo três
mas agora
a ordem
não interessa
o que importa
neste momento
é reconhecer
que meu presidente
é um poeta
presente
quem duvida
que viva
até Novembro
p’ra escutar
os cantares
dos tambores
neste dois mil
e seis

*Domi Chirongo*
*(poeta moçambicano, pseudónimo de Domingos Carlos Pedro; poema inédito, 2006)

quinta-feira, outubro 05, 2006

Stabat Mater Africa

"Sem título"
(Tela de
Eleutério Sanches, pintor angolano)

Stabat Mater Africa*

De pé mãe-África
Séculos e Séculos
Sempre vigilante
De pé stabat Mater África

Tu, mãe-África, sempre de pé
Coragem nunca te faltou
Séculos e Séculos de pé

Ao teu colo tudo me deste
O amor me gerou dentro de ti
Os teus peitos de rijos a flácidos
As tuas mãos de macias a calejadas
Quentes
Ásperas
São duas páginas de ouro
Tu Mater, meu ouro, meu diamante

*Lívio de Morais*
*(
poeta e artista plástico moçambicano, 1996; daqui)

Eu

"Olho-te daqui"
(De uma folha de papel branco, um desenho de
José Vieira)

Eu*

Quero escrever versos,
Versos de amor, de ironia,
Quero preencher todos os espaços,
Desta folha vazia.

Quero, ao escrever,
Ser completamente livre,
Lembrar-me do que quis ter,
Mas que nunca tive.

Quero com estas tantas palavras,
Que escrevo sem encontrar fim
Encher além destas folhas brancas,
Os espaços imensos que há em mim.

Lembrar, esquecer
Dormir, acordar,
Desejar morrer,
E depois lamentar.

Senti a presença da solidão,
Ri as lágrimas que não chorei,
Agindo com o coração,
Sempre errei.

Escrevo partes do que sou,
E dedico-tas a ti,
Mas só eu o sei,
Não sairá daqui.

Todas as lágrimas foram enxutas,
Neste pedaço de papel, que agora é um pouco de mim,
As minhas palavras sentidas, doces ou brutas,
Assim como eu chegaram ao fim.

*Inês Delgado*
*(jovem poetisa portuguesa, retirado
daqui)

quarta-feira, outubro 04, 2006

nº. 100: Poema

"sem título"
(Tela de
Eleutério Sanches)
.
Poema*
(a minha homenagem a um Homem de Angola, Belli Bello)

…Quando souberes que a minha hora chegou
não deves chorar
e nem sequer os braços cruzar
Quem chora
Quem cruza
Consente
E nós não devemos consentir!

*Cao Belo*
*(Um dos dois heterónimos do embaixador Carlos Alberto O. Belo “Belli-Bello”; poema publicado, em Luanda, em 1959 na colectânea poética, “Força Nova”)

quinta-feira, setembro 28, 2006

Mensagem de Ojna a Adrocasued

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"Anjo com Escadas"
(Tela de
Suzart)
.
Mensagem do Anjo de Angola «OJNA» ao irmão Deus Acorda*

DEUS ACORDA, digo-te, que muitos filhos da nossa Angola continuam a verter lágrimas de sofrimento, caídas na terra que nos criou na esperança de sermos felizes. Uma terra resplandescente de riqueza, onde o sol de todos os dias, espalha a riqueza dos seus raios de luz na igualdade.
..........A paz, chegou finalmente, alguns resultados se veêm: famílias que se reencontra e andavam perdidas no desespero da guerra, hoje caminham nas estradas ainda cicatrizadas de ódio em reencontros de novos mundos, jamais reprimidos; crianças voltam à escola com o seu lápis de carvão e borracha para se fazerem homens, (a,e,i,o,u); muitas órfãs, muitas com marcas nos leves corpos dóceis; homens e mulheres trabalham nas lavras, a cantar e a suar canções de liberdade; operários madrugam para o emprego, contribuindo para o bem estar social… Mas a paz não é total! Existem ódios ressentimentos e invejas que vêm de longe e continuam a manchar os corações do nosso País. Dividem-se em ideologias e vontades próprias, muitas para espalharem a luz do Sol a todos: «fazer do pobre mais rico»!
..........Angola precisa de AMOR!
..........Tu António Deus Acorda, que nasceste no quimbo, que brincaste descalço à beira dos rios, mas que o destino te sorriu para não seres um contratado à ordem do colonialismo, estudastes e trabalhas para a construção do País novo com alma sempre renovada e com muitas lágrimas no coração, humilde, continuas a ser um verdadeiro exemplo de esperança.
..........Dá esta mensagem António Deus Acorda ao Povo de Angola:
..........Angola para ter esperança próspera, precisa de Paz e de Justiça. É preciso que todos se empenham e não olhem para o lado para ver o que os outros fazem para depois fazerem também. Não há que ter receios dar os passos para a construção da Nação. Há que cantar o Hino Nacional Acordados e Unidos em Amor.
..........Viva Angola
..........Viva a União dos Angolanos
..........Deus Acorda
a) Ojna.

*Ana Paula de Castro*
*(romancista angolana-portuguesa)

segunda-feira, setembro 18, 2006

Comboio africano

"Comboio angolano"
(CFB – Ponte da Variante do Cubal, foto de
C.Pires)

Comboio africano*

Um comboio
subindo de difícil vale africano
chia que chia
lento e caricato

Grita e grita

quem esforçou não perdeu
mas ainda não ganhou

Muitas vidas
ensoparam a terra
onde assentam os rails
e se esmagam sob o peso da máquina
e no barulho da terceira classe

Grita e grita

quem esforçou não perdeu
mas ainda não ganhou

Lento caricato e cruel
o comboio africano…

*António Agostinho Neto*
*(poeta e político angolano (1922-1979); poema retirado da obra Sagrada Esperança)

sexta-feira, setembro 08, 2006

“Deus Acorda” no Horizonte Angolano

"Um antigo machimbombo das estradas angolanas"
(Foto de autor desconhecido)
.
(Uma despretensiosa análise literária, publicada na revista Eventos, edição nº 4 de Agosto de 2006, ao belo e interessante livro de Ana Paula de Castro “Deus Acorda” cujo um dos textos já aqui foi publicado)*
.
Um bom amigo, de uma forma que teve tanto de audaciosa como desafiadora – e ele sabe que nunca fujo a desafios – incumbiu-me de fazer uma análise ao recente livro de Ana Paula de Castro, “Deus Acorda”, um empolgante romance de cerca de 250 páginas com a chancela da Papiro editora.
Sabendo ele que prefiro que façam análises aos meus trabalhos em vez de do fazer ao de outros, mesmo assim impôs-me essa árdua, mas agradável e estimulante tarefa.
Árdua, porque sendo um especialista de assuntos internacionais me seria, difícil ter suficiente objectividade para analisar um Romance que se passa com e na nossa querida Angola.
Agradável e estimulante, porque o livro é mais que um romance. É uma perfeita narrativa da moderna História de Angola. Daquela que vai dos anos pré-insurreccionais – nos idos de 1963 – até à Dipanda. Mas se bem analisarmos o romance de Ana Paula de Castro, constata-se que o tema acaba por se estender até ao presente, até agora.
Um tema que vai muito para além da simples vivência de um miúdo angolano, Adrocasued – acrónimo gentio do cristianizado Deus Acorda –, nascido num quimbo perto de Benguela, e que, como todas as crianças angolanas do período pré-luta pela independência nacional vivia do que a terra lhe oferecia, sem preocupações de maior e em paz contemplativa com a natureza mas ávido do conhecimento e da inquietude que todos os humanos demonstram ter na presença o desconhecido.
Um rapazinho que se fez homem na amizade e na adversidade
.”
O artigo pode ser lido, na íntegra, acedendo aqui.
* Eugénio Costa Almeida

segunda-feira, setembro 04, 2006

Retalhos da vida

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"Happiness is Flowers"
(Tela em oleo de
Millie Greene)
.
Retalhos da Vida*

Há noites muito escuras em que o vento violento
e ruidoso
traz a tempestade inclemente.

Os trovões e os relâmpagos invadem a madrugada
como se fossem durar para sempre.

Não há como ignorar os sentimentos
que tomam de assalto
nossos frágeis corações.

O medo e a incerteza tiram nosso sono,
e passamos minutos
infindáveis,
imaginando o pior,
temerosos de que o céu possa,
de um momento para o outro,
cair sobre nossas cabeças.

Sem, no entanto,
qualquer aviso,
o vento vai se acalmando,
as gotas de chuva começam a cair
com menos violência
e o silêncio volta a imperar na noite.

Adormecemos sem nos darmos conta do final da intempérie,
e quando acordamos, com o sol da manhã a beijar-nos a fronte,
nem sequer nos recordamos das angústias da noite.

Os galhos caídos na rua,
a água ainda empossada na rua, nada,
nenhum sinal é suficientemente forte para que nos lembremos do temporal
que há poucas horas nos assustava tanto.

Assim ainda somos nós, criaturas humanas, presas ao momento presente.

Descrentes,
a ponto de quase sucumbirmos diante de qualquer dificuldade,
seja uma tempestade ou revés da vida,
por acreditar que ela poderia nos aniquilar
ou ferir irremediavelmente.

Homens de pouca fé, eis o que somos.

Há muito tempo fomos conclamados a crer no amor do pai,
soberanamente justo e bom,
que não permite que nada que não seja necessário e útil nos aconteça.

Mesmo assim continuamos ligados à matéria,
acreditando que nossa felicidade depende apenas de tesouros
que as traças roem e que o tempo deteriora.

Permanecemos sofrendo por dificuldades passageiras,
como a tempestade da noite,
que por mais estragos que possa fazer nos telhados e nos jardins,
sempre passa e tem sua indiscutível utilidade.

Somos para Deus como crianças que ainda não se deram conta da grandiosidade do mundo e das verdades da vida.

Almas aprendizes que se assustam com trovões e relâmpagos
que, nas noites escuras da vida, fazem-nos lembrar da nossa pequenez e da nossa impotência diante do todo.

Se ainda choramos de medo e não temos coragem bastante para enfrentar as realidades que não nos parecem favoráveis ou agradáveis, é porque em nossa intimidade
perante a mensagem do Cristo ainda não se fez certeza.

Nossa fé é tão insignificante que ante a menor contrariedade
bradamos que Deus nos abandonou, que não há justiça.

Trata-se, porém, de uma miopia espiritual, decorrente do nosso desejo constante de ser agraciados com bênçãos que, por ora, ainda não são merecidas.

Falta-nos coragem para acreditar que Deus não erra,
que esta característica não é dele,
mas apenas nossa,
caminhantes imperfeitos nesta rota evolutiva.

Falta-nos humildade para crer que, quando fazemos a parte que nos cabe na tarefa,
tudo acontece na hora correcta
e de forma adequada.

As dores que nos chegam e nos tocam
são oportunidades de aprendizagem e de mudança
para novo estágio de evolução.

Assim como a chuva,
que embora nos pareça inconveniente e assustadora,
em algumas ocasiões,
também os problemas são indispensáveis para a purificação
e renovação dos seres.

Por isso, quando tempestades pesarem fortemente sobre nossas cabeças,
saibamos perceber que tudo na vida passa,
assim como as chuvas, as dores, os problemas.
Tudo é fugaz e momentâneo.

Mas tudo, também, tem seu motivo e sua utilidade no nosso desenvolvimento.

*Suzete Madeira*
*(Poetisa da nova vaga moçambicana)

sexta-feira, setembro 01, 2006

Vida Fantasma

"Testa Fantasma"
(Óleo e carvão sobre tela,
Bruno Bernier, 1988)


Vida Fantasma*

Caminhando incertamente para um futuro
(Im)previsto
Promessa solene de incumprível exigência
Guardando com a vida (e a morte) a Sua bíblia,
O seu coração,
A sua versão
Testemunha suprema do mal (in)evitável

Contraria.

Apenas o respirar do cachimbo suave mantém a insolência dos dias
Das noites
Da concisa (i)mutabilidade das coisas
Impróprias
Para consumo
Esperando apenas partir
Quebrando o co(r)po agora vazio deixado para trás
Ao relento
Contam-se os cacos
Contam-se as vidas
Contam-se segredos
Contam-se verdades

E mentiras.

Suprimido por si próprio
Nada faz porque não quer
(Alguém que queira é o que realmente quer)
Mas o futuro aproxima-se
O passado persegue-te
E o presente arrebata-te!

*Orlando Gilberto de Castro*
*(jovem estudante português; os novos autores da Lusofonia; poema inicialmente colocado
aqui.)

domingo, agosto 27, 2006

Santomensidão

"Cascata"
(fotos de STP por
Pedro Norton de Matos, Novembro.2005)
.
Santomensidão*

O poema está no ritmo
do nosso sangue cruzado. Na idade
da nossa santomensidão

cheiros de terra quente
palmares de avó Sipinge
distância em distância entre
o leste e o oeste
o norte e o sul

o poema
é a única rota que deixa sulcos no cais
imensurável dos nossos atropelos

*Olinda Beja*
*(poeta e contista santomense; este poema, retirado
daqui, faz parte da colectânea “Água Crioula”)

quarta-feira, agosto 23, 2006

O Mundo é Grande

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"Mundo de Esperanzas"
(Obra em Madeira e mármore de
Guillermo Gomez)
.
O Mundo é Grande*

Não, meu coração não é maior que o mundo.
É muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores.
Por isso gosto tanto de me contar.
Por isso me dispo,
por isso me grito,
por isso frequento os jornais, me exponho
cruamente nas livrarias: preciso de todos.

Sim, meu coração é muito pequeno.
Só agora vejo que nele não cabem os homens.
Os homens estão cá fora, estão na rua.
A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.
Mas também na rua não cabem todos os homens.
A rua é menor que o mundo.
O mundo é grande.

Tu sabes como é grande o mundo.
Conheces os navios que levam petróleo e livros,
carne e algodão.
Viste as diferentes cores dos homens,
as diferentes dores dos homens,
sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso
num só peito de homem... sem que ele estale.

Fecha os olhos e esquece.
Escuta a água nos vidros,
tão calma. Não anuncia nada.
Entretanto escorre nas mãos,
tão calma! Vai inundando tudo...

Renascerão as cidades submersas?
Os homens submersos-voltarão?
Meu coração não sabe.
Estúpido, ridículo e frágil é meu coração.
Só agora descubro
como é triste ignorar certas coisas.
(Na solidão de indivíduo
desaprendi a linguagem
com que homens se comunicam).

Outrora escutei os anjos,
as sonatas, os poemas, as confissões patéticas.
Nunca escutei voz de gente.
Em verdade sou muito pobre.

Outrora viajei
países imaginários, fáceis de habitar,
ilhas sem problemas, não obstante
exaustivas e convocando ao suicídio.

Meus amigos foram às ilhas.
Ilhas perdem o homem.
Entretanto alguns se salvaram e
trouxeram a notícia
que o mundo, o grande mundo está
crescendo todos os dias,
entre o fogo e o amor.

Então, meu coração também pode crescer.
Entre o amor e o fogo,
entre a vida e o fogo,
meu coração cresce dez metros e explode.
- Oh, vida futura! Nós te criaremos.

*Carlos Drummond de Andrade*
*(poeta, contista e cronista brasileiro (1902-1987) no aniversário da sua morte; poema publicado na obra “Amar se Aprende Amando”)

segunda-feira, agosto 21, 2006

Quem sou?

"Serra da Chela – Leba"
(foto de José M. Lourenço, 2006)

.
Quem sou?*

Mas afinal quem sou eu!?
Nome não tenho
Nação não tenho
Origem não tenho
Parentes não tenho
Amigos não tenho
Dignidade não tenho
Cor não tenho
Idioma não tenho
Religiao não tenho.

Chamo-me palanca
Welwitchia mirabilis
Morro do binda
O pensador
A serra da Chela
A marimba e o kissange
A dikanza.

Sou kimbundo
Bacongo
Ngangela
Umbundo
Cuanhama
Fiote
Tchokue.

Sou o semba
E a massemba
A rebita
Kilapanga
Sungura.

Sou negro
Kilombo
Kazua
Sou o óbito
As lágrimas
O caixão e sepulcro
O palhão
Ou a mudança de luto.

Sou os rios
Lucala
Zenza
Luinha
Sem esquecer os outros.

Sou o roque santeiro
Congolenses
Asa branca
E os kuanzas…

Sou a lavra
A horta
A inceta
O kihande
A mataca
A mandioqueira
O bombom
E o funge.

Sou a maratona (…)
Festa
Capuca
Maruvo
Quissangua
Quimbombo
A música
Kizomba
Cuduro
Tarrachinha.

Sou o sol ardente
Calor suado
Chuva torrencial
Muzumbi
Sou o muloji
O kimbanda
Ou o milongo.

Sou a sanzala
A vila
E a cidade
Sou tudo.
Não tenho nome que me cabe.

*Luis Miguel*
*(poeta angolano, 2/7/06)

Prostituta: estranha forma de vida

"Prostituta no espelho"
(Tela de
Georges Rouault [1871–1958])
.
Prostituta: Estranha forma de vida*

Posto o sol da esperança
O medo acaricia-lhe os olhos
Ao espelho as meias pretas
Atenuam-lhe as nódoas roxas dos cifrões

Mulher sem ventre
Corpo a monte sem passaporte
Sabes do cio o inverno precoce
As grutas inundadas por mar alheio
Os adjectivos espancados
E os beijos sem seiva

No teu corpo
Há neblina perfumada de fantasia
O segredo e o ódio
Talvez vagas de esperança
Mas quando o teu corpo dá à costa
Já em terra o peixe é fresco
E o lugar comum de estar só está de volta.

*Paulo Sempre*
*(pseudónimo de Paulo Jorge Correia, poema retirado daqui, Agosto 2006)

quarta-feira, agosto 09, 2006

O Moringue

"Quietude Africana"
(Uma tela de Kouti, retirada da Galeria do Sanzalangola)

O Moringue*

O sol que queima as folhas das palmeiras
E os pés caminhantes sobre a areia
O sol que traz o vento e afasta o peixe
Ele não esquentará a água do moringue.
Não há sol no canto desta casa
Há sombras dos luandos que fazem as paredes
A areia do chão traz a frescura da terra
Os caniços do luando têm a frescura
Que trouxeram das terras de Cabíri
Quando, de andar nas canoas, voltamos do mar
E a garganta vem a arder como se era sal
A água do moringue sabe-nos como nada mais.

E, a quem nos pede, com o coração alegre,
Nós a oferecemos, nas canecas de esmalte..


*Henrique Guerra*
*(Poeta angolano)

sexta-feira, julho 14, 2006

UAU!!! Férias grandeeees!!!!

Apesar de não vir aqui durante as próximas quase três semanas colocar novos contos e poemas, nem por isso, ou talvez por isso mesmo, se deva de deixar continuar manter viva a cultura e a leitura.
Pois nestas três semanas alguns livros que têm estado nas prateleiras para melhor oportunidade vão ver o seu pó ser limpo e as suas palavras degustadas com imenso e evidente prazer.
Boa leitura e boa cultura.

terça-feira, julho 11, 2006

Poema de um homem só

"Marie-Hélène"
(Óleo sobre tela de Arpad Szenes, 1942)

Poema de um homem só*

Alma pura, bela e cristalina,
maldita lava incandescente;
és ofuscante
e radiosa.
Porém,
róis-me,
no todo,
profundamente.
Fronte de loiro coroada,
és amora silvestre.
Rosto sereno,
angélico,
inteligente,
irritadiço.
Desprezas, feres,
odeias ou amas?
O que emanas
nesse teu vaguear constante
ondolante,
sem dó.
És,
certamente,
o meu fruto proibido,
o fruto vedado a um Homem só!

*Lobitino Almeida N’gola*
*feito em Lisboa, 23 de Maio de 1989