O que é este Blogue?

Quando se junta uma amálgama de palavras, um conto ou um poema podem sempre emergir. A sua divulgação fará que não morram esconsos numa escura e funda gaveta. Daí que às minhas palavras quero juntar as de outros que desejem participar. Os meus trabalhos estão publicados sob o pseudónimo: "Lobitino Almeida N'gola". Nas fotos e pinturas cliquem nos nomes e acedam às fontes.

quarta-feira, abril 25, 2007

… foi há 33 anos. Lembras-te?

"Porta-aviões na Praia Morena"
(Se ele falasse... Também aqui fui feliz! Uma das belíssimas fotos de
C.Pires sobre Benguela)

… foi há 33 anos. Lembras-te?*

Não te sinto poeta
Que matas a liberdade
Na saudade que é dor,
Diz-me qual a tua meta,
Se odeias a verdade
Se destróis o amor.

Vem como irmão eterno,
Põe nos versos o céu
E nos sonhos a prece,
Porque a vida é inferno
Que nesse teu véu
Se sente e transparece.

Fala-me do sorrido da lua
Nas noites do teu amor
De saudades sem fim,
Não penses na flor nua
Que em pedaços de dor
Murchou no meio do capim.

Fala das noites (perd)idas
Nas praias de Benguela
Com sonhos sem idade,
Fala das acácias floridas
E do alto da nossa favela
Olha e diz-me: Saudade.

… foi há 33 anos. Lembras-te?

*Orlando Castro*
*(jornalista, poeta e contista angolano-português; publicado inicialmente
aqui)

segunda-feira, abril 23, 2007

Dia Mundial da Leitura: Redenção

"O Sol, a Lua e o Arco-Íris"
(Tela de
Noel Langa)

Redenção*

Vento fótchi na bilá soplá fá…
É noite e chove no fundão!
Tudo funca-funca di Vila
Tudo niguê Santana
Tudo niguê Guadalupe
Tudo niguê Gamboá
Canta e dança o socopé…

Ao romper da manhã
Mesmo ao pé de uma jaqueira
Cada par negro sorrirá ao Sol
Com mãos fartas de ginguba!


*Onésimo Silveira*
*(poeta e escritor caboverdiano; poesia inserida no conto “Toda a gente fala: sim senhor”, publicado pela Publicações. Imbondeiro)

Dia Mundial da Leitura: Lavadeira

"Lavadeira"
(Pastel sobre papel, de Jorge Barradas (1894 - 1971), 1920)

Lavadeira*

Banco raso
Celha cheia
Mãos pretas em roupa branca

Silenciosa a lavadeira
Pende a frente num trama longo.
Carrega um mundo o fumo denso
Da boca muda baforado.

Ao lado
As moscas enxameiam a boquita entreaberta
Do seu filho adormecido


*Arnaldo Santos*
*(poeta angolano; poema transcrito na “Antologia Poética Angolana”, col. Imbondeiro, 1963)

quinta-feira, abril 19, 2007

Momento

"La Polìtica"
(Aguarela de
Maugdo Vásquez López)
.
Momento*


Nos olhos dos fuzilados
dos sete corpos tombados
de borco, no chão, impuro,
eis!
… sete mães soluçando…

Nas faces dos fuzilados,
nas sete faces torcidas
do espanto ainda e receio,
… sete noivas implorando…

E do ventre de além-mundo,
sete crianças gritando
na boca dos fuzilados…
sete crianças gritando
ecos de dor e renúncia
pela vida que não veio…

Na boca dos fuzilados
vermelha de baba e sangue
… sete crianças gritando!...

*Alda Lara*
*(poetisa angolana, poema inicialmente publicado no“ABC – Diário de Angola” e transcrito na “Antologia Poética Angolana I”, col. Imbondeiro, 1963)

Viagem ao Sul

"Cuanhama"
(Tela em óleo de
Francisco Gomes de Amorim)

Viagem ao Sul*

Esta beleza agonizante do Cuanhama
espraiando-se até à linha do horizonte
como um tapete estafado
que se desfaz sob os nossos pés
fala-me de guerras passadas e de reinos
......................... já dos homens olvidados…

Morrem como a terra as tradições
numa infinita tristeza
numa apática indiferença
que magoa como uma lembrança triste.

Secam as cacimbas, as talas, o capim
...............só não secam as lágrimas.
Só não morre em mim esta pungente
faculdade de sofrer junto com a terra.

É por isso que eu gosto de cá vir
e é por isso que me custa vir aqui
e ver alvejar a carcassa daquele boi
que morreu o ano passado!

E os paus caídos nos eumbos poeirentos
e os gongueiros sem folhas nem frutos
secos, secos como os braços dos mutiátis…

É por isso que me custa vir aqui!
...................Sofro e compreendo
O Cuanhama que busca em vão a esperança
que o sol inclemente lhe arrancou
da terra que lentamente se recusa
aos nossos passos.

*Neves e Sousa*
*(poeta e artista plástico angolano nascido em Portugal; poema da obra “Batuque” e transcrito na “Antologia Poética Angolana”, col. Imbondeiro, 1963)

sexta-feira, abril 13, 2007

Doutores, Poetas e uma Trova

"Turbulência"
(Tela a óleo de
Alim)

DOUTORES, POETAS, E UMA TROVA*

Que lamento… os quadrúpedes destruíram os bípedes… ficaram feras em festim que infestam o reino com festas.
Uma invasão de predestinados, doutores e poetas institucionalizados. Poetas, todos com o dom que Deus lhes deu. Doutores evidenciados, anunciam-se:
- A montante e a jusante do sistema desestruturado, ainda sem condições psicológicas objectivas e subjectivas, de efeitos endógenos e exógenos, porque as estruturas não confinam, foram-se, estão debalde abaladas. É o binómio da aderência positiva e do saneamento básico do meio.
E o auditório em uníssono aplaude a sapiência do grão-mestre.
Com o analfabetismo a oitenta, noventa por cento, os doutores e poetas excedem as esquinas. Nestas se acotovelam, atropelam-se, e não têm Muro das Lamentações. Donde repentinamente veio tal avalanche de avatares? Ninguém sabe, mas desconfia-se que é devido às alterações climáticas, ao calor abrasador que faz ferver os cérebros. E já se instituiu a novel classe social do doutor coronel-poeta, doutor novo-rico, poeta novo-rico. É a abertura da marcha do desenvolvimento económico e social. É mais fácil ser superficial, porque aprofundar exige muito trabalhar
O estatuto de doutor e poeta permite-lhes reuniões, debates, conferências, seminários, assembleias, tertúlias, e agenda nacional de consenso, onde no fim os participantes descobrem estupefactos que não há consenso. Há unanimidade em que as questões económicas e sociais de um país decidem-se com intermináveis conversas. Desconhece-se quem está disposto a trabalhar. Um participante desiludido questionou:
- A democracia é a aspiração do voto em dias melhores que nunca surgem. É o eterno voto de permanecer sempre na mesma. As tradições orais foram-se, perdemos a nossa identidade cultural. O desenvolvimento económico e social é sustentado pelos doutores e poetas dos planos quinquenais. O melhor desenvolvimento económico é matar o povo à fome. E a militância poética glorifica os feitos dos reis do petróleo. Ah!.. poesia da terra oca, vazia, sem conteúdo, irrealidade virtual.
E o poeta militante, milita, afia as goelas, palavreia:

Os meus punhais anoitecem, na destruição sistemática
Do que resta, já foi, já era, não será
Punhais ferrugentos, das águas impuras
Corroídos, perdidos nos quilombos. Corruptos, corrompidos!
Ao libertarmo-nos do colonialismo tínhamos o desejo do regresso
Aos nossos gloriosos eternos quilombos. Estamos imensamente felizes
Todos mandamos, somos chefes, somos a anarquia
Somos livres na nossa feitiçaria, na nossa anarquia
E quem é que manda? Os donos do petróleo e diamantes!
Ser patriota, é passar fome, nunca venceremos esta guerra
Porque é atrozmente difícil. Fácil é carregar no gatilho
Sem bibliotecas públicas, e com milhões de gatilhos
Pereceremos vencidos, vendidos à fome.

Dos poderes da magia, eis que surge o último trovador profissional da tradição oral:
- Bantus, à procura do Graal, da perdida tradição oral! Canto a trova dos deserdados das fortunas, desesperançados da riqueza aviltados. Nos poderes exteriorizados. Poder, são os povos a sofrer. O poder da miséria é histórico. Morrer, padecer à fome é um acto heróico. São tantos os soldados conhecidos. A vida da miséria é revivida. Nos tostões parcos da despedida. O poder de Kalunga é incomensurável. Só nos lembramos Dele quando a miséria bate brutalmente no coração. Que antes era ferro ferrugento, e que repentinamente se purifica. E a lepra subsiste. Símbolo da miséria é andar de mão estendida, com o filho às costas, a chorar, a desesperar. Por entre carros desumanizados, sem conseguir mendigar. Os passos encurtam-se, está a acabar a luz solar. O chão de dormir endurece a noite sem luar. Fome é desfalecer, desarrumar a esperança sem forças para lutar. É triste morrer só, abandonado em qualquer lugar. A fome não tem moradas, mas os seus caminhos estão localizados. Os ignaros sacralizam-nos, presenteiam-nos os caminhos da fome. Sem estrada, ponte, rua, sem nada. Os abarrotados protegem-se oprimindo os miseráveis. Os miseráveis bebem água inquinada, os abarrotados água engarrafada. O calendário da vida está prenhe de dias injustiçados.
Pausa, retoma a memória:
- Fora de questão: não é o menino das chuvadas, é o homem.
É isso! E num país de sol ardente um carro aportado, abortado sem ar condicionado. As pessoas estão sempre a morrer e a nascer, a chorar e a cantar. Uns vão mais cedo, outros mais tarde. Mas todos vão. Idiotas com uma bandeira e um hino! A questão é: sem um tostão. Isto não é uma nação, é o fundamentalismo da escravidão. Uma agenda sem consenso, sem referendo da fome.
.
*Gil Gonçalves*
*(um português algures em Angola; conto original, 2007)

segunda-feira, abril 09, 2007

Mil Gotas

"A Chuva"
(Acrílico sobre tela de
Alexandre Loeb Caldenhof)
.
Mil Gotas*

Em Abril
gotas mil,
se despenham!

Em Abril
colhemos gotas mil,
outras finas
umas grossas,
umas alvas
outras vaporosas!

Em Abril
gotas mil,
o ar pincelam!

Em Abril
límpidas gotas mil,
uma etérea chuva,
uma colossal borrasca,
uma diáfana neve,
pintam!

Em Abril
gotas mil,
os rios engrossam!

Em Abril
com gotas mil,
árvores medram
pássaros chilreiam
e mares alargam!

Em Abril
gotas mil,
o Verão divisam!


*Lobitino Almeida N’gola*
*(escrito em 3-Abril-2007; publicado também aqui)