O que é este Blogue?

Quando se junta uma amálgama de palavras, um conto ou um poema podem sempre emergir. A sua divulgação fará que não morram esconsos numa escura e funda gaveta. Daí que às minhas palavras quero juntar as de outros que desejem participar. Os meus trabalhos estão publicados sob o pseudónimo: "Lobitino Almeida N'gola". Nas fotos e pinturas cliquem nos nomes e acedam às fontes.

quarta-feira, dezembro 31, 2008

Bom 2009 no 4º ano de existência

(Luanda despede-se de 2009 no Largo da Independência; foto Sapo.ao/Foto@ANGOP/ Lucas Neto)

O Malambas, o seu autor, e porque não, todos os que aqui têm deixado os seus textos e comentários, desejam a todos os leitores deste blogue que quer ser cultural e defensor da Lusofonia, enquanto veículo de expressão e de união, votos de Bom Ano 2009 e que este 4º ano de existência que entra com o Ano Novo seja um pouco mais profícuo que o que acaba.

Bom Ano de 2009, cheio de muita cultura, muita poesia, muitos textos e acima de tudo livros mais baratos.

terça-feira, dezembro 16, 2008

Resposta ao Mestre José Craveirinha

Imagem reflectida do eu
(Tela do angolano
Thó Simões)

Resposta ao Mestre José Craveirinha*

Sabe Mestre…
Hoje os peidas gordas
Já não tem cor nem raça
E no entanto a táctica de por K.O.
Essa espécie com um punch
Ao primeiro round
Aumentou consideravelmente
E garanto-te também mestre
Que já existem mais peidas…
Os peidas magras
E os peidas minguadas
De tanta ignorância instalada
Já se confundem
E fundem,
Joe Louis
Com Max Schmelling
E os Skin Head’s, Neonazis emprestados,
Apregoando nacionalismos exacerbados
Fazem vendettas urbanas
Organizando linchamentos surpresa de negros e gays
E os tribunais de tão democráticos
Libertam-nos sob caução ou já com pena suspensa
E no final ficamos todos a perder,
A perder no evoluir
Da regressão, alguma humanidade
E ficamos sem um pingo de vergonha!

*Delmar Maia Gonçalves*
*(poeta moçambicano; poema cedido ao Malambas pelo autor; Lisboa, 10/09/2007)

segunda-feira, dezembro 01, 2008

Dia Mundial na Luta contra o SIDA


SIDA*

Somente
......uma dor enorme
Inimaginável
......e desmesurada
Dantesca
......e incompreensível
Ainda anda e persiste
......porque há para quem a Prevenção é ininteligível!

Não façamos de um Dia, um só Dia, mas o primeiro de Todos os Dias!

*Lobitino Almeida N’gola*
*(o meu contributo para o Dia Mundial do Sida)

terça-feira, novembro 04, 2008

Resistência

"Sem Título"
(Foto “Tonspi;
daqui)

Resistência*

Do Negage à Portela
Pérola Quicongo à beira Tejo
Bairro da lata de Areeiro
Musseque dos espoliados em Lisboa

Negra sozinha na noite
Embrenhada no escuro dos escorraçados
Avenida abaixo, calçada arriba
Olhos tristes, paisagem do desconforto

Como quem persegue a luz
Borboleta africana, perseverante
Paciente e desesperada, luta, desarmada
Na garganta um nó
Mas, ainda assim, sorri…
Mostra alvos os olhos
E os dentes…
Da boca carnuda, belíssima…
Negra esbelta, triste
E contente
Só porque está viva
E seduz…

Que linda que ela vai
Anda prenha a negra do Congo
Veio de tão longe parir em Lisboa
Um filho da noite no musseque do Areeiro…
.
*Luís Urgais*
*(poeta português; da obra “Trinta e três poemas inteiros” cedido à Casa de Angola)

terça-feira, setembro 30, 2008

Névoas

"Quitandeiras"“
(Foto da Etnografia angolana;
daqui)

Névoas*

Vão-se os gorjeios em dias
vazios de sons.
Sobre estas calçadas
frias de granito
não há nada que seja
tempo
som
vento
cheiro bom.

Tudo flui! Tudo é nada!
Só a voz longe-longe das quitandeiras
do Lobito
ressoam ao vento-pregão
percorrendo Caponte e Compão:
-Xi fèrreraaa, mariquitaaa...
enchendo o ar da saudade
de tempo-peixe
de tempo-cheiro
condensado em novelos de cacimbo,
névoa, nada e mais nada.

Quitandeiras – vendedouras de peixe ou fruta.
Cacimbo – nevoeiro, tempo da estação seca.


*Namibiano Ferreira*
*(Poeta angolano; gentilmente cedido pelo
autor)

Quitandeira

"Mulheres com farinha de trigo"
(Uma tela a óleo, de Lívio de Morais, representando quitandeiras;
daqui)

Quitandeira*

A quitanda.
Muito sol
e a quitandeira à sombra
da mulemba.

- Laranja, minha senhora,
laranjinha boa!

A luz brinca na cidade
o seu quente jogo
de claros e escuros
e a vida brinca
em corações aflitos
o jogo da cabra-cega.

A quitandeira
que vende fruta
vende-se.

- Minha senhora
laranja, laranjinha boa!

Compra laranja doces
compra-me também o amargo
desta tortura
da vida sem vida.

Compra-me a infância do espírito
este botão de rosa
que não abriu
princípio impelido ainda para um início.

Laranja, minha senhora!

Esgotaram-se os sorrisos
com que chorava
eu já não choro.

E aí vão as minhas esperanças
como foi o sangue dos meus filhos
amassado no pó das estradas
enterrado nas roças
e o meu suor
embebido nos fios de algodão
que me cobrem.

Como o esforço foi oferecido
à segurança das máquinas
à beleza das ruas asfaltadas
de prédios de vários andares
à comodidade de senhores ricos
à alegria dispersa por cidades
e eu
me fui confundindo
com os próprios problemas da existência.

Aí vão as laranjas
como eu me ofereci ao álcool
para me anestesiar
e me entreguei às religiões
para me insensibilizar
e me atordoei para viver.

Tudo tenho dado.

Até mesmo a minha dor
e a poesia dos meus seios nus
entreguei-as aos poetas.

Agora vendo-me eu própria.
- Compra laranjas
minha senhora!
Leva-me para as quitandas da Vida
o meu preço é único:
- sangue.

Talvez vendendo-me
eu me possua.

- Compra laranjas!

*Agostinho Neto*
*(poeta e político angolano (1922-1979); retirado da obra Sagrada Esperança)

quarta-feira, agosto 27, 2008

Picada de marimbondo

"Elefante solitário"
(Foto de autor angolano desconhecido; retirada da Net;
que o marimbondo não o apoquente...)

Picada de marimbondo*

Junto da mandioqueira
perto do muro de adobe
vi surgir um marimbondo

Vinha zunindo
cazuza!
Vinha zunindo
cazuza!

Era uma tarde em Janeiro
tinha flores nas acácias
tinha abelhas nos jardins
e vento nas casuarinas,
quando vi o marimbondo
vinha voando e zunindo
vinha zunindo e voando!

Cazuza!
Marimbondo
mordeu tua filha no olho!

Cazuza!
Marimbondo
foi branco que inventou...

*Ernesto Lara Filho*
*( poeta angolano – poesia publicada na Antologia de poesia da Casa dos Estudantes do Império - Angola e S. Tomé e Príncipe; retirado daqui)

Pátria Mãe!

"Vila Bijagó, GB"
(Foto de autor desconhecido; retirada
daqui)

Pátria Mãe!*

Tu me viste no ventre
Tu me viste nascer
Crescer me viste
Ressurgir eu te vi
Ressurgir das entranhas coloniais.

Os teus filhos se revoltaram
Irrequietos, se levantaram
Levantaram-se firmes
Firmes numa certeza
Firmes na esperança de vencer.

Pátria Mãe, na árdua caminhada,
A vitória era único destino
A vitória era a Liberdade
A Liberdade é hoje.

Pátria Mãe, tu vives na Memória Nacional
Tu vives na Memória dos Mortos
Que te honraram com suas vidas
E por tua causa foram.

Foram e nunca mais voltarão
Nunca mais ouviremos suas vozes
Nunca mais ouviremos o eco de suas vozes
O eco de suas gargalhadas
Gargalhadas nos labirintos afins.

Nunca mais sentiremos bater o seu coração
Bater de esperança e coragem
Bater de alegria e do dever cumprido
Nunca mais lhes diremos, Camaradas!
Nunca mais contaremos o passado

O passado nos confins de Cubucaré
O passado no coração de Morés
O passado nas masmorras de Tite e afins
O passado nas submarinas da marinha
O passado nas ilhas das galinhas
O passado de reencontro da tua dignidade.

Nunca mais ouviremos a cadência de seus pés
Cadência de seus pés nas colinas de Boé
Nas lalas e matas de Nhacra
Nas matas e lalas de Guilege e Guidage
Nas matas históricas do chão de manjaco
Nunca mais mataremos saudades.

Mas um dever nos deixaram,
De vivificar a tua história heróica
De preservar as tuas conquistas
De defender a tua integridade moral e física
De construir a nação que Amílcar sonhou edificar
De preservar perenemente a tua dignidade.

E assim honrar o sacrifício superior - a morte
A morte dos teus melhores filhos
Que devemos honrar com a acção da cidadania
Honrar a Pátria que Cabral se entregou de corpo e alma
E assim, honrar perenemente a ti, oh Pátria Mãe!

*José Bacar*
*(heterónimo de José Carlos Cocamáro; poeta Bissau-guineense – Julho de 2005; retirado
daqui)

Descifrar a dor e o amor

"Sombras"
(Foto de Luís Costa, Agosto 2008; retirada
daqui)

Descifrar a dor e o amor*

Sei que existe o céu, e que há estrelas, nuvens e noite
Sei que há chuva, frio e calor
E que há perfume nas flores. Cores? Não sei, mas sei que há sabor
E sei que há noites, manhãs e dor
Sei que há sorrisos, desencontros, sons e silêncio
Sei até que há degraus, que você sobe, desce, para!
E conheço sua voz.
E que quando suas mãos apalpam meu corpo, sinto medo
Mas quando ouço sua voz… sinto a calmaria dos campos
Alimento minha alma de amor, tolerância e fidelidade…
Mesmo quando estou só.
E lembro que…
Quando amanhece, e o sol brinca de secar o orvalho de meu corpo,
Deito no chão macio, e sorrio, mesmo que só!
Não sei falar com as mesmas palavras que você.
Mas conheço algumas, e as vezes até decifro
E mais ainda, você conhece todas as minhas
Quando estou perto de você , tratada por você …
Meu olhar explica o que sinto no corpo e na alma.
Acho que a dor e o amor se misturam
Sinto minha alma se misturar a sua
Num misto de gratidão e alegria
Que não sei se sou gente ou bicho
Sei apenas que perto de você
Não sinto mais solidão nem dor.
.
*Lira Vargas*
*(poesia brasileira; retirado
daqui)

Durmo sem sonhar

"The Dream"
(Tela de
Henri Rousseau, 1910)

Durmo sem sonhar*

Nasci na África triste, ou triste Africana
Evito encontrar-me, fujo de mim
Durmo sem sonhar
Até os pesadelos me abandonaram
Sonho de olhos abertos e vejo milhares de naus
Multidões nas praias que me perseguem
E escondo-me no que resta da civilização

Tento suavemente sentir a sensação
Da profunda escuridão
Depois das dramáticas batalhas de cada minuto
Para não encurtar a minha vida
Nos muitos anos de guerra
Porque os desígnios da minha existência paradoxal
Nunca serão lembrados

No beiral areal, real lixeira de corpos desumanos
Sou como os palhaços, rio, faço rir
Dentro de mim estou triste
Rio para esconder a minha tristeza
Tenho o direito ancestral de ficar calada
Os dias antecedem a bruma das noites
Negra escuridão dos tempos perdidos,
jamais recuperados
Receio que tenha de partir para longe,
já que aqui não vejo ninguém por perto

Revolução de contínuos descontinuada
Na apanha da bebedeira ficam três dias a dormir.
Alguns não acordam
Era o colonialismo, a seguir vieram os descolonizadores
Depois o neocolonialismo. Que será o que se segue?
África, berço e túmulo da humanidade.

*Gil Gonçalves*
*(um português algures em Angola; retirado
daqui)

terça-feira, julho 15, 2008

Aquém

"Munyau Na Nyoka"
(Pastel, lápis-de-cor e caneta de feltro sobre papel, de Kivuthi Mbuno, 2006)

AQUÉM*

Podia entregar minha voz ao silêncio,
aconchegá-la no ralhar das calemas
calar…
escondê-la na renda fria dos cacimbos
cristalizar…
podia entregá-la à voracidade do tempo
petrificar…

podia prostituir meu corpo,
o templo castrado da Poesia
profanar…
podia… podia esquecer-me de ti… Poesia!
e desta mediocridade poética
que me transborda das vísceras
macilentas da alma…
sempre aquém das cantigas e kissanjes;
sempre aquém de tua voz quente de Povo;
sempre e sempre aquém do teu bafo
terra sangue sagrado que abraço!

*Namibiano Ferreira*
*(poeta angolano, poema inédito; 14/07/2008)

quinta-feira, julho 10, 2008

Não são flores

"Acácias de Benguela"
(Foto de
Carlos Pires)

Não são flores*

Não há flor que cante
toda a dor que sinto,
não há fantoche falante
que diga que minto.

É a verdade do nosso sorriso
e as lágrimas do nosso olhar
que ao longe diviso
irem encher o mar.

As flores não são flores
e os cravos não são de sol,
nesta vida só há dores
e flores murchas sem escol.

Na sombra da minha sepultura
sinto que não minto, mas sinto
a morte que nos beija e cura
a ferida que por aqui pinto.

Não são flores de verde pinho
nem sequer cravos encarnados,
são os espinhos do meu caminho
e as cicatrizes de filhos sacrificados.

*Orlando Castro*
*(jornalista, poeta e contista angolano-português;poema originalmente
aqui)

Poema Assanhado de Amor

"Trio"
(Tela a óleo, de
Armando Barrios, 1954)

POEMA ASSANHADO de AMOR*

Já sinto
teu cheiro de gata sem coleira,
castidade ou cinto
em "telhado de zinco quente"
se lambendo
se mordiscando
plena de tesura,
ansiedade da espera,
do teu gato, gatão,
muá, je, eu
que ainda não gemeu.

Gato que não dá miado
nem mia rouco,
tão pouco.

Porque não é bem gato
é tigróide no cio
que não lambe prato
só rosna no mato
da sua tigreza
cheia de natureza
amor, sexo e beleza
do beijo rosnado
no corpo amado
se elevando das miudezas
em glória nas alturas
cheios de dia-pasõn
em todas as cordas!

Total transmutatiõne!!

Oitavas no sétimo, kundalini
dedilhadas al dentinho
no violon da amada
neurónios nervudos esticados
no amplexo da entrega
ao domicílio de eros,
com cama sem sutra,
sem regra sem ama!

Pura émotion, agradável.
Amor, fina na mente!

*João Craveirinha*
*( Poeta, contista e artista plástico moçambicano; Nyamesoro Néngue wa (in) Suna (Feiticeiro Perna de Mosquito), Lisboa, 4 Julho 2008)

segunda-feira, junho 16, 2008

E hoje é Dia da Criança Africana!

(Todos queremos que as nossa crianças sejam felizes; assim os deixem...)

E porque hoje é Dia da Criança Africana!*

*“(…) À noite, na sala de visitas, Raquel abriu, curiosa, o canal do seu futuro emprego, TV Estrelas Notícias, para apreciar o seu funcionamento técnico. Apresentaram‑se dois locutores, com cerca trinta anos. Ele. Ela. Ele vestia um fato cinzento, camisa branca e gravata encarnada. O cabelo impecavelmente cortado e a postura do corpo bastante correcta. Ela vestia um casaco escuro sobre uma camisa encarnada. Os cabelos eram negros e compridos. Traziam na cara um brilho rosado e um ar pleno de responsabilidade. Os dedos remexiam levemente quando a fonética denunciavam pequenas falhas.
Ela: «A fome no Sudão. Um drama que já matou mais de sessenta mil pessoas num ano.»
Ele: «Fome é hoje a bandeira do Sudão, assombrado pelo sofrimento das crianças, com índices de desnutrição dramáticas, olhos afundados e cabelos finos sem cor, a pele enrugada como pessoas idosas.»
Ela: «As mães, desidratadas, não conseguem alimentar os filhos. As crianças são verdadeiras migalhas humanas, deitadas na poeira como se fossem nascidas de um mundo de terror.»
Ele: «O gado encontra‑se esquelético sobre fantasmas da morte.»
Ela: «Ao Norte do Mariel Lou, os conflitos continuam com frequência entre dois clãs do Dinka, o Aliek e o Longkpak. As pessoas fogem para sul. Há crianças desaparecidas cujo destino se desconhece.»
Ele: «O economista americano Jeffrey Sachs diz que, com a ajuda dos países ricos, em duas décadas, seria possível erradicar a miséria em todo o mundo. Seguem‑se imagens capazes de ferir a susceptibi­lidade dos telespectadores.»
As imagens eram silenciosas e horripilantes.
A mulher negra, só pele e osso, desolada, encontrava‑se sentada no chão poeirento. Vestia um pano de chita estampado a cobrir o corpo. Num braço, trazia uma filha cujo olhar de medo expressava o espasmo da fome. No outro braço, trazia o filho esgazeado, a lamber com sofreguidão as lágrimas grossas que lhe caíam pela cara. As crianças embalavam a esperança no fim do conflito, com os trinta e quatro anos de guerra civil. Milhões de mortes. A inércia sem resoluções de entendimento. O Sudão.
Raquel sentia‑se amargurada e triste. Acendeu um cigarro e suspirou. Esmaecida, ergueu‑se, desligou a televisão e dirigiu‑se à cozinha. Arranjou um copo de água com açúcar. Bebeu.
«Que mundo é este em que vivo?», perguntou‑se, aturdida. «Não acredito que este planeta não seja o mais atrasado do Universo! Que esperam os extraterrestres para o invadir e transformá‑lo num deserto igual a Marte? Não habitado!» (…)”

*Ana Paula Castro*
*(romancista angolana-portuguesa; extracto da obra “Sou Jornalista, você é árabe?”, a apresentar dentro de dias; edição da Editorial Novembro)

sexta-feira, junho 06, 2008

Revolução Verde ou nova forma de gualdripar?

"Aldeia Global"
(Desenho A4 a Nanquim (tinta da China), de João Craveirinha, 1983, Principado de Andorra)


Revolução Verde ou nova forma de gualdripar?*

Que te interessa nasceres rico,
se pobre és
e pobre vives?

Que te interessa seres de país rico
se tu e teus irmãos medram
na vida que outros desamparam?

Que te importa teres longas savanas
se nada te deixam comer
a não ser pós e lamas?

África,
tens fome?
Não te preocupes!
A FAO pensou
e uma revolução verde te dará
de esperanças muitas
e retóricas maiores.

Tu produzirás,
e colherás,
o que eles já não produzem.

E eles sentidos receberão,
comerão,
o pouco que não tens,
o muito que lhes dás!

Compreendes, os seus ventres,
grandes,
não são cavos de esperança
como os dos filhos que gerastes,
mas halos na abundância!

Mas precisam que te queixes
que te continues a queixar;
porque só assim solidários serão
nas mínguas migalhas que pomposos te darão.

Porque te interessa seres rica,
se pobre és,
e escrava subalterna continuas a viver?

Chega!
É tempo de dar um grito
e grilhetas quebrar!

FAO, ONU, UE, Brasis,
contingentes e quejandos afins,
Chega!

Chega de gualdripar
o que produzimos!
Chega paladinos,
os nossos minérios extirparem!

Chega!

Têm fome?
produzam!
Querem biocombustíveis?
em casa demandem!

Não mais somos,
nem mais seremos
os vossos marginais!
Queremos igualdade,
impomos,
ser tratados como iguais!


*Lobitino Almeida N’gola*

*(feito no Dia do Meio Ambiente; 5/Junho/2008)

quinta-feira, junho 05, 2008

NEGRO…

"O feitiço misterioso de Néngue uá iNssuna"
(Desenho de João Craveirinha, sob verso de José Craveirinha, 1968 - ver explicação infra*
)

NEGRO:
SER OU NÃO SER
NÃO É A QUESTÃO!
(é tudo imposição)*


Queres que eu seja negro
da cor da noite das trevas?
Então sou!
E depois não digas que a mulher negra não é bela.
É tão bela como pode ser a tua mulher
que dizes ser, da cor da luz branca,
onde vive o divino!
Sou negro e depois?

Ah, não!!

Agora sou racista por aceitar com um sorriso
o que me impões e aceito,
e te devolvo?
Só quero igualdade.
Nada mais!

*João Craveirinha*
*( Poeta, contista e artista plástico moçambicano; poema inédito que também pode ser lido aqui; feito em 02.06.2008)
* Desenho de João Craveirinha (sobrinho) feito com esferográficas vermelha e preta em 1968 no campo de treino político-militar da Frente de Libertação de Moçambique em Nachingwea. Sul de Tanzânia. Nengue uá iNssuna era um feiticeiro muito conhecido em toda a região a Sul do Rio Save de Moçambique. Viveu (anos 1950) na zona fronteiriça com o Zimbabué repleta de elefantes e de outra fauna bravia. Muitos brancos portugueses iam às suas consultas, sobretudo caçadores, e outros da então cidade colonial de Lourenço Marques.
Glossário do xiRonga:
....................Néngue = perna
....................uá = de
....................iNssuna = mosquito

quarta-feira, junho 04, 2008

Na planura onde o capim secou

"Uma acácia perdida no meio do capim"
(foto retirado
daqui)

Na planura onde o capim secou*

na planura onde o capim secou

a poeira fina
cobre as carcaças
que
a morte caprichosa
foi espalhando

murchos estão os seios
que
o menino agarra
e
das árvores esquálidas
pendem papéis velhos e trapos

das esperanças promessas e palavras
..........................................de um tempo
sobra
o silêncio vazio e amargo
..........................da morte

na planura onde o capim secou

*Arlindo Barbeitos*
*(poeta angolano; do livro “Na leveza do luar crescente”, 1998)

Identidade

"Palanca Negra"
(uma identidade angolana)


A identidade*

a identidade
ou

o voo esquivo
de pássaros nocturnos
em torno da lua

identidade
é cor
de burro fugindo.
*Arlindo Barbeitos*
*(poeta angolano; do livro “Angola, Angolê, Angolema”, 1976)

domingo, junho 01, 2008

Pelo Dia Mundial da Criança: Os Meninos do Meu País

"O Futuro tem de lhes sorrir"
(Foto da José Silva Pinto "
Tonspi", Abril 2008)

Os Meninos do Meu País*

Os meninos do meu País,
paridos numa obtusa guerra,
sob a endémica enfermidade
e na sombra da fome
brotaram,
cresceram,
sobreviveram!

Os meninos do meu País,
durante tempos a fio
tiveram na inseparável kalashnikov
de ferro, ou de pau,
o garfo,
a colher,
a pena
que a fome matava
e a cultura calava.

Os meninos do meu País,
anos corridos
na rua se fizeram,
na guerra cessaram,
e nos destinos corridos da discórdia
simplesmente pulularam.

Os meninos do meu País,
muitos anos,
demasiados anos,
os estreitos sapatos do destino
os desprezaram.

Os meninos do meu País,
a fome,
a guerra,
a doença
a todos por tu os tratou!

Os meninos do meu País,
a vida penaram;
mas os doces sorrisos de criança,
quais maravilhosos chilrados
nos sibilinos bandos livres
nunca esmoreceram!

Mas os meninos do meu País
estão a querer ganhar
uma nova vida
um novo destino
um novo rumo!

Os meninos do meu País,
querem ser os Homens
que no próximo amanhã
a fome ceifarão,
a guerra suprimirão,
a doença aniquilarão
e quais alegres bandos de pássaros
sob um luminoso sorriso de catraio
o País iluminarão!

Assim os Homens do meu País
o percebam
e aos meninos do meu País
a vida lhes devolvam!

*Lobitino Almeida N´gola*
*(escrito em Lisboa, 31-Maio-2008; publicado também aqui)

sexta-feira, maio 23, 2008

“25 de Maio - Dia Mundial de África” Leopardo

"A Aurora"
(Tela do angolano
Fernando Caterça Valentim)

Leopardo*

A noite da escuridão
tem os olhos do leopardo
faiscando diamantes.
Leopardo: fere o meu coração;
aguça os meus sentidos;
crava, usa tuas garras;

não deixes o sal
arrefecer o sangue da poesia;
não deixes a rocha
tecer o casulo da ignorância;
não deixes o cacimbo
cristalizar a alma do poeta.

Viverei eu, assim, eternamente cantando
estes e outros versos insanos e selvagens
torcidando meus sentidos,
dispersando a alma nos teus olhos leopardo,
no fulgor suave das noites
e na fúria brava das calemas.

*Namibiano Ferreira*
*(poeta angolano já citado em duas Antologias poéticas;
daqui)

segunda-feira, abril 28, 2008

Quem sou?

"Landscape"
(Tela de Paulo Nascimento, 2007;
daqui)

Quem sou?*

Quem sou
e para onde vou,
o que faço
e onde estou?
Não o sei.
Só sei que fazer nada sei,
e para onde ir eu devo.

Assim o afirmava o poeta,
e também o digo eu,
que não sou um trovador
e muito menos um bardo pateta.
Somente um aturdido
que procura o rumo,
um caminho,
uma passagem
que diga,
que aponte
para onde vou.

Se um pária não o sou,
nem marginal ainda estou;
se errando no espaço,
o meu carácter ausculta;
serei eu um amordaçado,
um desbandeirado,
um naufragado?

Não!
Isto não é verdade!
Sei o que quero,
como ir,
como fazer,
e, principalmente,
sei onde ainda estou!

Então se sei o que quero,
se sei para onde hei-de ir,
eu vou,
então porque estou inquirir
quem eu sou?

O que dúvidas desacertadas
e imateriais me provoca,
se um organismo vivo eu sou.
Umas vezes desabusado,
sempre que me deixa o ensejo;
outras e não poucas, andante,
sem nunca ir ao sabor da inanidade;
mas sempre, sempre
um ser vivo e pensante!

Sou um ser que garatuja
poemários cantantes do seu País
e do Lobito,
a sua maravilhosa cidade;
malambas e mukandas desconexas,
ensaios que ninguém evoca,
escritos sociais ou políticos
que passam e se presumem
por trilhos e caminhos esconsos,
estreitos,
ou sinuosos
que desconhecido algum pisa
ou navega.

Por isso,
e se quem sou eu sei,
porque deixo a incerteza
trovejar o coração
e a mente,
ribombar nos olhos
e no inconsciente,
os dedos tremer
e os lábios ciciar?

Ou será que…
Quem eu sou
e para onde vou,
o que faço
e onde estou,
nitidamente não o saberei.
Só sei que tudo quero fazer
e parece não saber onde estar;
no espelho a chipala,
que dormente antevejo,
pergunta,
queixita,
discute,
para onde ir eu deverei,
de uma forma positiva
e livre,
a vida trautear
quem deveras eu sou!

*Lobitino Almeida N’gola*
*(Publicado primeiramente n' O melhor da Web)
(feito na Galé em 26/Abr/2008)

quarta-feira, abril 23, 2008

Dia Internacional do Livro e do Direito de Autores: Intemporal

"Endless"
(Magnífica foto de Biliana Rakocevic)

Intemporal*

Desperta altaneira, seduzindo o beija-flor,
Flor de laranjeira tuas pétalas compõem,
Reminiscência a sombra do esplendor,
Vertentes de emoções, em aromas o ar sobrepõem.

Empresta-me a luz do teu olhar por um instante
Para que possa ver a magia do luar enamorada,
Deixei confinado em minh alma, desejo vacilante,
Minhas noites têm sido de quimera entrelaçada.

Intemporal, palavras voam junto ao vento,
Nas asas das letras triste alento,
Páginas de um romance amarelado pelo tempo.

Sonetos pintados aos sons de lágrimas
Adorno na face, cálido ninho,
Singela gota que cai, sobre o pergaminho.

*Águida Hettwer*
*(poetisa
brasileira; poema retirado daqui, 2007)

quarta-feira, março 19, 2008

Paladar

"Tele (Come)"
(Acrílico sobre tela de
Tchalê Figueira, 2004)

Paladar*

Respiro o teu corpo:
sabe a lua-de-água
ao amanhecer,
sabe a cal molhada,
sabe a luz mordida
sabe a brisa nua,
ao sangue dos rios,
sabe a rosa louca,
ao cair da noite
sabe a pedra amarga,
sabe à minha boca

*Niki Menezes*
*(poetisa e jornalista angolana; pseudónimo de Eunice Carla M. de Menezes; poema do livro “Entre a sombra e o corpo”, 2008)

sexta-feira, março 07, 2008

Meu Filho

"Les Grandes Constructions"
(Óleo sobre tela,
Vieira da Silva, 1956)

MEU FILHO*

Meu filho!
Quando ouvires os políticos guarda silêncio
Porque quando se cansarem serás escutado
No cerro da noite não temas as sombras das árvores
Contraria-te, congratula-te pelo luar oferecido
Porque nos tempos dos temporais que decorrem
Só nos resta essa sublime dádiva divina
E quando vires um esfomeado arrastar-te no teu caminho
Nunca o desprezes! Ele indica o caminho da espera
Aos que desviaram maliciosamente os caudais das riquezas ilícitas
Para a democracia das contas secretas da Suiça

No dia-a-dia passarinheiros imitarão o canto de sereia das promessas
Repetirão sem exaustão sempre o prometido
E nas iguais odes e sonatas escutadas por todo o lado
Perdurarão sempiternos trovadores místicos
E jograis que não serão mais escutados
Na tormenta das cidades não absorvas as multidões
Afasta-te, observa-as
Verás um universo circense, muita palhaçada

Nas muitas horas vadias não te dás conta
Do tempo que te resta, que te falta para viveres
Irremediavelmente já te passaram muitos anos
Na máquina do teu tempo
Despertas porque já não tens mais horas vagas
Na recuperação do tempo perdido
Conheces muitas pessoas mas, nunca conhecerás nenhuma
Se não conheceres profundamente uma delas
E quando finalmente só e abandonado
Relembra-te que os teus pais
No silêncio tumbal aguardam a tua companhia
Estão, estarão sempre contigo

*Gil Gonçalves*
*(um português algures em Angola; original de Março de 2008)

terça-feira, fevereiro 26, 2008

Incerteza

"o caminho parou longe..."
(Desenho de João Azevedo e Silva)


Incerteza*
(Angola ausente)


Sinto
no ar
no silêncio
no ruído
na luz
e na escuridão
auréolas
do teu corpo
mensagens
de tua alma.

Quero
prendê-las
tocá-las
absorvê-las.

Tento
juntá-las
erguê-las
formar teu ser
palpável.

Em vão…

Persisto
pois
rasgando
o espaço
e o tempo
buscando
na comunicação
de nós dois
a certeza de que existo.

*João de Azevedo e Silva*
(poesia de Angola; da obra Angola: Quotidiano I)

quarta-feira, fevereiro 13, 2008

Fala da rainha de regresso ao Kimbo

"Tempestade no deserto do Namibe"
(O deserto da infância de Ruy de Carvalho; foto de
Saiago)

Fala da rainha de regresso ao Kimbo*

O capitão chegou
viu e venceu.
É a sua força
de matar-me os homens.
Minha porém, maior,
é a ciência
de entender os astros.
à mão que fere e mata
oponho uma colheita de segredos.
A terra é minha
e dela me entronizo.
às gerações delego
a reconquista.
O tempo que me serve
é de outra cor
e o sol decidirá
a cor do mando.
Irmãos ouvi-me bem
eu sou rainha.
Quem vos governa os corpos
saberá
das outras heranças
para que me guardo.

De que futuro pode haver temor
para quem tanto acumula de passado?


*Ruy Duarte de Carvalho*
*(angolano; poema da obra “Memória de tanta guerra (Antologia Poética)”, 1992, edições Vega;
daqui)

quarta-feira, janeiro 30, 2008

Contos da vida real 11: Clínica dos Petróleos e Corpo Diplomático

" 'O Pregão'; vendedora de milho de Luanda"
(Tela de Toia Neuparth)


CLÍNICA DOS PETRÓLEOS E CORPO DIPLOMÁTICO*

A política não é apenas para ser feita pelos políticos”. Gilberto Freyre.

A libertação da escravidão é uma ilusão.
As madeiras de ébano estão estatuadas, estratificadas, no passeio do prédio passeadas. No seu tabuleiro, a velha Teresa retoca as pinturas dos rebuçados, bolachas, pastilhas elásticas, cigarros. Reajusta o gelo na caixa térmica para que as gasosas magnetizem a clientela. No centro do tabuleiro um bocado de papelão previne: NÃO ACEITO KILAPIS!
A Marta e a Emília tentam kinguilar dólares.
Passa uma ambulância com o dístico: CLÍNICA DOS PETRÓLEOS E CORPO DIPLOMÁTICO.
A velha Teresa espera que o efeito “dopler” termine e inicia a conversa habitual, interminável.
- Até agora nunca consegui entender porque é que vi a maldade sempre triunfar. E a bondade limitar-se apenas, creio que é isso, a uma mera invenção, para nos tornar submissas, obedientes e temerosas.
A Marta está atenta a um carro que parou. Parece que quer trocar.
Faz-lhe sinal com a mão. O outro renuncia. Engata-se na dica da velha Teresa.
- A abolição da escravatura foi mal feita. A escravatura e o colonialismo ainda não acabaram.
Um esfomeado da democracia incipiente colecciona qualquer coisa nos caixotes do lixo. A velha Teresa usa o seu melhor tom crítico.
- A independência deles veio para andarmos à procura da nossa liberdade nos caixotes do lixo. O que resta da nossa liberdade, está aí!
A Emília estava com cara de taxo. As duas olharam-na interrogativas, como querendo insinuar o anormal de mulher estar calada. A Emília sorriu um pouco, e concordou:
- É isso manas! Somos uma nação de escravas, dirigidas por escravocratas!
A Emília escuda-se na cara de contra-anúncio. A velha Teresa intriga-se:
- É o quê, mana Emília!?
- Porra! Esses gajos são muito feiticeiros! Primeiro enfeitiçaram-me 2.500 dólares falsos, depois mais duzentos; É pá!.. vou na igreja, não se pode estar na rua. Conseguem roubar o dinheiro que temos na carteira; é como se tivessem um aspirador.
A mana Marta já tomou defesas, um anti-feitiço.
- Eu estou a pôr um bocado de carvão e jindungo na minha carteira, para não me aspirarem o meu dinheiro.
A velha Teresa não deixa escapar nada.
- Olhem; olhem; não é a Génia?
A Génia está estacionada, disfarçada entre automóveis. Esfrega, jubila a racha num pretendente. Fazem-se festinhas, cochichos, parece que mais tarde vai fazer horas extras. A velha Teresa chateia-se:
- Então, e o brasileiro? Parece que gosta muito dela. Está sempre a trazer-lhe coisas.
A Marta antecipa-se à Emília, pouco há para esclarecer.
- Oh! Qualquer um lhes serve.
A velha Teresa retoma o rumo dos habituais impropérios.
- Porra! É por isso que as pixas e mais essa merda toda me metem nojo. Ah; é por isso que nunca mais quis homem.
- Eu também não. Desde que o filho da puta do meu marido me deu chapadas na cara, nunca mais quis homem. Assim estou muito bem.
Homens, que vão todos para a puta que os pariu!; – Sentenciou a Marta.
Na rádio do poder ouve-se um governante alardear os seus feitos.
Publicita a inauguração de uma vulgar estrada, que se Deus quiser aguentará uns meses. Depois reconstrói-se e as comissões também. «E o que os colonos não conseguiram fazer em cem anos, nós acabámos de o fazer agora»
- É o ministro militante, triunfante da ainda vanguarda da classe operária e camponesa. – Gozou a Marta.
- Continuam a roubar-nos as terras, os terrenos; até fazem dos passeios armazéns de contentores, e agora parece que são os prédios; já nos tiraram fotografia. – Alertou a velha Teresa
- A nossa África Negra é o paraíso dos aventureiros e dos governantes sem escrúpulos. – Lembrou a Emília.
A Marta e a Emília olham fixamente, longamente para a velha Teresa que se assusta.
- É o quê manas? Não gosto nada que me olhem assim. Até parece que cheiro a catinga, ou tenho peçonha.
- Depois do arrombo que os feiticeiros nos deram, estamos a ficar aflitas com dinheiro. Pois é; como é; o dinheiro que te emprestámos, nada? A tua filha de Portugal, ainda? – Interrogou a mana Emília.
- É manas, estou bem fodida! A minha filha telefonou-me, disse-me que agora não dá, que comprou brutas roupas; é, vai-me enviar rebuçados, e que depois me enviará o dinheiro. – Justificou a velha Teresa.
Dois seguranças aguentam duas portentosas, rebentos de madeiras de ébano com dez anos de idade. A lábia delas é convincente:
- Vá lá; arriámos para dez dólares!
- É pá, não chateiem! Mas vocês não têm família? Não têm vergonha, ainda tão crianças? Deviam estar numa escola ou numa creche! – Aconselhou um segurança.
- Ah! seus burros, parvalhões! – Insultou a que parecia a chefe.
E foram-se frias com as rachinhas quentinhas na noite acalorada. Se não conseguirem rachador, não haverá comida, gasosa, e roupinhas.
A velha Teresa abana a cabeça descontente. Pisa fundo no acelerador da inconsciência nacional.
- Ainda agora nasceram, e já a sofrer assim? Meu Deus!
- Há muitos pedófilos entre nós nacionais; são uma das nossas instituições milenares. – Disse a Marta.
- Esta nossa pedofilia só é denunciada quando feita por estrangeiros! – Exclamou a Emília.
O homem conduz o seu carro agitadamente. Vê-se que está com muita pressa. Só pode ser por causa de um negócio. Vê um mendigo, um esfomeado à frente do carro a pedir esmola. Olha para o relógio e vê que está atrasado. Se perder o negócio perderá muito dinheiro.
Acelera e passa por cima do faminto, deixando-o esmagado, abandonado na via.
A quinze passos à esquerda do prédio está uma criança na porta do supermercado. O segurança enxota-a. Como fazem as moscas, a criança retorna. O segurança afugenta-a e vai e volta, vai e volta. O segurança interroga-a com a cabeça. A resposta é sempre a mesma:
- Tenho fome! Quero pão!
O segurança está cansado, não aguenta mais tanto rodopiar. Grita-lhe:
- Queres pão!? Vem cá!
O desgraçadinho acredita que conseguiu. Aproxima-se confiante e leva duas boas cacetadas nas costas. O segurança repete a pergunta:
- Queres mais pão!?
Um pouco mais à direita um homem que decerto é louco intenta arrancar uma terna árvore. A velha Teresa perguntam-lhe:
- Oiça, faz isso porquê?
- Vou construir aqui um casino. As árvores não me dão dinheiro.
Para chatear ainda mais, surge vendaval. As árvores agitam-se, querem roçar o chão. O lixo voa por todo o lado. Começam a cair os primeiros pingos robustos. Vai ser uma boa chuvada. A velha Teresa aflige-se, refugia-se com a mercadoria dentro do prédio.
- Merda para esta chuva! É quase assim todos os dias. Hoje não vou vender quase nada outra vez.
Eis que surgem novos-ricos. Os auto-eleitos presidente e vice-presidente do prédio. O presidente quer passar, mas o tabuleiro da velha Teresa não deixa. Então o presidente ataca:
- Já disse para acabarem com esta pouca-vergonha. Vão vender para outro lado!
A mana Emília fala bem português. A Marta e a velha Teresa também.
A Emília desfere um contra-ataque.
- Hum!.. mas você comprou o apartamento ou o prédio?
A seguir a comitiva está presente a esposa do presidente. A entrada já tem uma pocinha de água.
- Mas que chatice, que javardice. Vou molhar os meus sapatos e o seu delicado conteúdo.
- Porque é que não fazes como nós? Anda de chinelos! – Solucionou a velha Teresa.
- Eu!?.. Era só o que me faltava! Só usarei chinelos quando for pobre como vocês!
As madeiras de ébano reprovam-na agitando as cabeças. A velha Teresa é a primeira a recobrar-se do desânimo:
- Dantes eram os brancos, agora são os negros que nos escravizam.
Ai!.. manas; afinal lutámos pela nossa independência para quê? É tudo deles! Viva a nossa independência de escravas! Filhos da puta! Puta que os pariu!
Falta o mulato Eros, que desce as escadas triunfal. Com dezoito anos já tem duas filhas de duas adolescentes. Vem com uma negrinha, muito jovenzinha que intoxica as narinas com o cheiro de perfume muito barato. Só pode ser por causa da falta de água. Banhou-se com perfume para esconder o cheiro da catinga. E a Emília resume a vigilância, a contagem do mulherengo:
- Desde o meio da manhã até agora, esse mulato já subiu e desceu com seis negras. É um grande fodilhão. O gajo toma remédios.
E os congressos e os debates extermináveis prosseguem-se. Desdiz-se sempre a mesma coisa. Nada há de novo. Excepto o reino que se afunda, na miséria, na fome. E o dinheiro petrolífero, diamantífero abunda, abundante. Está o dinheiro nos bancos das contas pessoais, muito impessoais, muito secretas.
Tudo está como no Livro do Pragador.

*Gil Gonçalves*
*(um português algures em Angola; conto original, Janeiro de 2008)

sábado, janeiro 19, 2008

Vento

"Vento de Sudoeste"
(Tela de
João Barcelos)

Vento*

O vento soprou Noroeste.
-Mas que peste!
Desarrumou meu cabelo.
Não por falta de zelo
mas ele assim ficará.

Quem sabe o vento volta à Sudeste
e traz os meus pêlos de volta ao lugar?

*Rildo Ferreira*
*(poeta e analista brasileiro; poema inicialmente publicado
aqui)

Novelo de linha

"Sem título"
(Acrílico e tinta sobre papel, de
Franck K- Lundangi, 2006)

Novelo de linha*

No novelo de linha
onde eu encontro a ponta?
Aponta pra mim.
Se no novelo se esconde
a linha não tem fim.

Mas a ponta
quando se encontra
encontra só o começo
de um novelo assim.
A linha, de algodão,
fazendo voltas, enroladinha
é um grande novelo
-uma proeza enfim!

Uma obra de arte
enrolar numa ponta de linha
toda a linha que tem.
E se a linha é grande,
grande será o novelo.
Grande a proeza de alguém.

*Rildo Ferreira*
*(poeta e analista brasileiro; poema inicialmente publicado
aqui)

quarta-feira, janeiro 09, 2008

Aljezur Algarvia de Meus Encantos

Aljezur Algarvia de Meus Encantos*

Quase roteiro de uma viagem, de um Craveirinha Moçambicano e João

I
De súbito,
Perante meu olhar afro
tropical
Surge Aljezur.
Ao longe,
(“Bunhêra” e Rogil)
Terras ancestrais de meus avós
De encantos e desencantos

II
Aljezur minha,
Na poeira do tempo
Conflitos
Cristãos-Mouriscos
Gritos, cavalos relincham.
Espadas desembainhadas, cimitarras,
tinem no entrechoque
por nossa Fé.
A nossa e a dos outros.

III
Aljezur minha,
dos Sarauís – saloios,
sefardim-ladinos,
no auto-da-fé
amaldiçoados, insultados:
“marranos”!

IV
Aljezur minha
no tempo perdida,
Chibatadas, no áfrico – escravo
esquecidas
no cruel pelourinho
das casas senhoriais
arrogantes morgados
de fartos cabedais.
Lampejos da história
no remanso da memória,
hoje, luminosa Aljezur,
de meus encantos.

V
Aljezur minha,
dos moçárabes,
exilados sefardins-judeus
outros judeus convertidos
ou não tanto, cristãos-novos
de alheiras no arco da portada
à inquisição escapando.

VI
Ah, Aljezur minha,
doces sabores
batata-doce actuais
“Caldêrada” de “pêxe”,
Sorriso afável das Marias Franciscas
Moças morenas, trigueiras,
ruivas outras, das nórdicas paragens
ou da Bretanha, maior.

VII
Aljezur, do Saber dos ti-Manéis,
Josés e Joões Fernandes,
Craveirinhas de Sacêra
com vacas na remada
a comer a roçar a mata,
na labuta da lavoura,
por dez tostões na jorna:
“Pórquêra” de vida!”

VIII
Aljezur minha,
na faina da pesca,
esforçados outros, ainda
Desafiando o encrespado
“Mar Português”
cantado
como “Lágrimas de Portugal”
pela Pessoa de Fernando.

IX
E, se
“Valeu a pena?”
“Se a alma não é pequena?”
Perguntem também ao Fernando,
mas o da Ofélia!

Nota: Poema rascunhado algures entre o Além-Tejo e o Algarve a caminho de Lisboa em 25.03.2007. Imagens de arquivo histórico; fotos família Craveirinha de Aljezur, Portugal (1917 e década 1930-40-60). Com fotos de João Craveirinha

*João Craveirinha*
*(Poeta, contista e artista plástico moçambicano; poema inédito)

terça-feira, janeiro 01, 2008

200: Perspectivas culturais pouco animadoras à entrada do 3º ano

"A cultura em Angola"
(Imagem dos
Serviços Culturais da Embaixada de Angola, em Portugal – só não entendo porque falta a província de Cabinda… será que já se separou e não nos avisaram?)

No apontamento 200 e quando entra no seu terceiro ano de plena existência, votos que a cultura melhore em 2008 porque me parece, pelo ano que findou, que ela está um pouco discreta.
De acordo com as visitas aqui efectuadas constato que:
Se no início eram claras e quase únicas as visitas provenientes de Portugal, embora com algumas boas – em termos de quantidade – visitas do Brasil, foi manifesto que ao longo de 2007 as visitas portuguesas, ou provenientes de Portugal, diminuíram drasticamente enquanto as visitas dos brasileiros excedeu as expectativas e são, nesta altura, muito superiores às restantes. E viu-se pelas buscas que muitas das visitas brasileiras tinham uma raiz cultural enquanto as portuguesas eram mais informativas.
Registe-se que, no final de 2007 o Brasil que tinha iniciado o ano com pouco mais de 20% das visitas a este blogue terminou 2007 com 40,94% – correspondente a um total de 6654 visitas nestes dois últimos anos – à frente de Portugal que diminuiu dos cerca de 62% para 40,63% (6604 visitas totais).
Nas posições secundárias surpreende o terceiro lugar dos EUA – não esquecer que este blogue é claramente pela cultura lusófona –, com 387 visitas e 2,38%, à frente de Angola, que não ultrapassa os 370 e 2,28%, e de França com 328, correspondendo a 2,02% das visitas totais.
Além de Angola, registe-se a presença de visitas de Moçambique com 213 visitas (1,31%), Cabo Verde (26 visitas ou 0,16%), de Macau (12 ou 0,07%), da Guiné-Bissau (11 ou 0,07%) e de São Tomé e Príncipe (5 visitas ou 0,03%). Infelizmente não há registos de Timor-Leste porque já me apercebi que este país está agregado(?!?!?!?!) à Austrália (basta aceder a biscas através do “eXTReMe Tracking”).
E registe-se que, em qualquer dos três países que se seguem aos dois colossos lusófonos e da grande maioria dos cerca de 80 países – com mais de uma visita (até agora tive o privilégio de ser visitado por 98 países e 5 regiões) – o acesso ao blogue deveu-se a uma busca cultural e não política ou social ou meramente visual (não esquecer que além de contos e poemas – estes só lusófonos – há também um acervo artístico que, embora predominantemente lusófono, engloba também de outras paragens e sensibilidades).
Já agora deixo aqui os 15 países com mais visitas ao “Malambas”: Brasil, Portugal, EUA, Angola, França, Reino Unido, Moçambique, Espanha, Alemanha, Itália, Holanda, Canadá, Suíça, Quénia e Argentina.
Porque a cultura continua a não ser considerada, pelo menos na maioria dos Países lusófonos, como um dos principais veículos para o desenvolvimento desses Países e dos seus Povos – basta ver como Portugal está a tratar de um assunto sério como é o Acordo Ortográfico (não se discute se é bom ou não, discute-se é a não-discussão patrocinada pelos académicos e pelos sucessivos Governos) – é natural que fique incrédulo quanto ao seu pleno desenvolvimento.
Bom Ano cheio de cultura a todos os internautas e bloguistas e a todos quanto visitam este blogue.
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