O que é este Blogue?

Quando se junta uma amálgama de palavras, um conto ou um poema podem sempre emergir. A sua divulgação fará que não morram esconsos numa escura e funda gaveta. Daí que às minhas palavras quero juntar as de outros que desejem participar. Os meus trabalhos estão publicados sob o pseudónimo: "Lobitino Almeida N'gola". Nas fotos e pinturas cliquem nos nomes e acedam às fontes.

terça-feira, setembro 30, 2008

Névoas

"Quitandeiras"“
(Foto da Etnografia angolana;
daqui)

Névoas*

Vão-se os gorjeios em dias
vazios de sons.
Sobre estas calçadas
frias de granito
não há nada que seja
tempo
som
vento
cheiro bom.

Tudo flui! Tudo é nada!
Só a voz longe-longe das quitandeiras
do Lobito
ressoam ao vento-pregão
percorrendo Caponte e Compão:
-Xi fèrreraaa, mariquitaaa...
enchendo o ar da saudade
de tempo-peixe
de tempo-cheiro
condensado em novelos de cacimbo,
névoa, nada e mais nada.

Quitandeiras – vendedouras de peixe ou fruta.
Cacimbo – nevoeiro, tempo da estação seca.


*Namibiano Ferreira*
*(Poeta angolano; gentilmente cedido pelo
autor)

Quitandeira

"Mulheres com farinha de trigo"
(Uma tela a óleo, de Lívio de Morais, representando quitandeiras;
daqui)

Quitandeira*

A quitanda.
Muito sol
e a quitandeira à sombra
da mulemba.

- Laranja, minha senhora,
laranjinha boa!

A luz brinca na cidade
o seu quente jogo
de claros e escuros
e a vida brinca
em corações aflitos
o jogo da cabra-cega.

A quitandeira
que vende fruta
vende-se.

- Minha senhora
laranja, laranjinha boa!

Compra laranja doces
compra-me também o amargo
desta tortura
da vida sem vida.

Compra-me a infância do espírito
este botão de rosa
que não abriu
princípio impelido ainda para um início.

Laranja, minha senhora!

Esgotaram-se os sorrisos
com que chorava
eu já não choro.

E aí vão as minhas esperanças
como foi o sangue dos meus filhos
amassado no pó das estradas
enterrado nas roças
e o meu suor
embebido nos fios de algodão
que me cobrem.

Como o esforço foi oferecido
à segurança das máquinas
à beleza das ruas asfaltadas
de prédios de vários andares
à comodidade de senhores ricos
à alegria dispersa por cidades
e eu
me fui confundindo
com os próprios problemas da existência.

Aí vão as laranjas
como eu me ofereci ao álcool
para me anestesiar
e me entreguei às religiões
para me insensibilizar
e me atordoei para viver.

Tudo tenho dado.

Até mesmo a minha dor
e a poesia dos meus seios nus
entreguei-as aos poetas.

Agora vendo-me eu própria.
- Compra laranjas
minha senhora!
Leva-me para as quitandas da Vida
o meu preço é único:
- sangue.

Talvez vendendo-me
eu me possua.

- Compra laranjas!

*Agostinho Neto*
*(poeta e político angolano (1922-1979); retirado da obra Sagrada Esperança)