“Sem título”
(Uma pintura africana de Isabelle Vital; daqui)
UM ANÃO NO SAMBIZANGA*
Ali à entrada do Sambila,
próximo da estrada que vai para o Cacuaco, há uma pequena casa de família, que
como é típico na região, tem um quintal ao lado, onde há galinhas e porcos.
Esta que eu quero descrever, além de casa de família, tinha também uma dependência,
com porta para a rua, que servia de Bar, com capacidade para seis ou sete
mesas. Ali serviam-se Cerveja, gelada dentro do possível, jinguba, feijoada,
servida em pratinhos como aperitivo e com muito jingungo.
O chefe de família, o velho
Kalukembe, fazia luxo em servir com qualidade e por isso a sua casa começava a
ter fama nas redondezas. De tal modo, que era muito difícil encontrar uma mesa
livre.
Em frente, havia um
descampado, onde se costumava organizar grandes espectáculos populares. E também,
grandes farras, onde se dançava, até às quatro ou cinco da madrugada.
Aliás, aquele descampado
serviu, no tempo próximo da dipanda, quando, naquela época, se atravessava um
período difícil de criminalidade, para julgamentos populares e respectiva
execução. As autoridades daquele tempo decidiram fazer um julgamento exemplar,
para travar os homicídios por ladrões que não hesitavam em matar só para obter
as bikuatas que queriam roubar. Foram apanhados seis assassinos de homens e
senhoras esventrados, todos moradores ali no bairro ou nas redondezas.
Foram condenados à forca!
Nesse dia, Kalukembe, fechou
a portas e janelas. Fechou as janelas de vidro, os estores e as portadas de
madeira que ficavam por dentro. E ainda correu os cortinados. Apagou a luz e mandou
os miúdos brincarem no quarto, autorizando-os a fazerem todo o barulho que
quisessem. A mulher, podia ficar na cozinha, mas sem abrir a porta, nem sequer
ir lá fora. Ele foi para a sala com o sogro. Sentaram-se, cada um no seu sofá.
Ligou o rádio e estava a cantar o Dionisio Rocha com os seus Negoleiros do
Ritmo. Ouviu e acalmou-se um pouco mais. Logo a seguir, começou a cantar o
velho Elia Dia Kimuezo, era o seu grande ídolo de miúdo. No intervalo, entre
uma música e outra, ainda ouvia gritos lá fora, mas ele tudo fazia para abafar
toda aquela tragédia. Põe o som no máximo, o sogro, já bastante surdo, pensou
que era por causa dele e agradeceu-lhe. Foi quando começou a cantar o Sabú e a
mandar o seu charme musical habitual.
Veio a noite e Kalu fez saber
a toda a família que não queria conversas sobre os enforcamentos. Na verdade,
ele não sabia se eram enforcamentos ou fuzilamentos, porque a certa altura
escutou tiroteio durante algum tempo. Seja como for, ele não queria saber de
nada. Apetecia-lhe esconder a cabeça na areia, para não pensar no assunto.
Passados estes anos todos,
ali o largo, continuou a ser o local de convívio popular.
Agora era o circo.
Montavam uma grande tenda
onde apresentavam malabaristas, palhaços, mágicos e animais amestrados.
Os altifalantes, debitavam
mega decíbeis, anunciando os seus artistas.
Agora, convém dizer que era
bastante amigo da família de Kalukembe, o que quer dizer que havia sempre mesa
livre para mim.
Eu saía da fábrica de
confecções e tecelagem, onde era gerente, por volta das cinco e tal e, regra
geral, antes das seis, já lá estava.
Tinha sempre uma pequena
conversa com o meu avilo Kalukembe, e rapidamente, dentro do possível, servia
uma Nocal fresca. E digo, dentro do possível, porque a energia eléctrica,
faltava com muita frequência. O mais-velho, o Kalukembe, ou Kalu, como também
era conhecido, tinha sempre celhas cheias de gêlo, para manter frescas as
cervejas, mas quando a luz demorava a chegar, bebia-se assim mesmo!
Eu ficava acompanhado na
mesa, por colegas da fábrica que vinham de boleia comigo e que moravam ali
perto, para saborear uma boa conversa, onde falávamos dos mambos do dia.
Desde que o circo estava ali
montado e que começava o espectáculo por volta das oito da noite, eu notava
que, de tarde, aparecia um individuo, pequenino, com uma bengala, onde se
apoiava, e bebia a sua cerveja. Ficava de pé, sozinho sem conversar,
olhando para o chão, com semblante triste. Triste e preocupado. Era o Anão do
circo. O artista do grupo de palhaços, pensava eu.
Um dia, ele entrou, eu, como
estava só, na mesa, convidei-o para se sentar. Ele aceitou.
E começou a conversa de
circunstância. Como se costuma começar qualquer conversa sem rumo.
Perguntei-lhe se morava ali no Sambizanga. Aquela pergunta, parecia uma torneira
que eu tinha aberto. O Anão, começou a falar e a contar toda a sua vida. Dava a
impressão, que tinha vivido isolado no mundo e que, de repente, tinha chegado a
um povoado, cheio de gente, onde ele podia falar à desfilada.
“Não senhor, eu nasci no Saurimo,
mas depois, por causa da guerra, fui para o Huambo. No Huambo, conheci um
Namibiano e fui para Windhoek e ali, o dono dum circo quis contratar-me e eu
aceitei. Então passei a ser o Homem-bala. De princípio eu tive medo, mas a
vontade de sair da miséria era tanta, que aceitei imediatamente. Quando me
disparavam, eu no ar, sentia-me voar para a nova vida. De tal modo me sentia
bem que, no ar, eu fazia o meu corpo, parecer uma bela ave, voando para a
liberdade.”
Eu interrompi-o, só para lhe
dar oportunidade de ele respirar e então, disse, “julguei que fizesse parte do
grupo de palhaços.”
“Na verdade há outro anão no
circo e esse é palhaço. É mais importante que eu. Quer dizer, era! Na verdade,
as pessoas começaram a gostar mais de mim e eu comecei a ser o artista mais
pretendido. Mas, infelizmente, qualquer dia vou ser despedido.”
Despedido?, porquê?,
perguntei espantado. Então, estão a gostar tanto de si...
Eu ainda não disse, mas o
anão chama-se Karbolovulokiala. Por questão de princípios, não gosto de gozar
com ninguém! Mas, olhei para o anão, tão pequeno, mas com um nome tão grande,
que tive de fazer força para não mostrar cara de gozo.
Deixem-me tratá-lo por
“Karbo”, para simplificar as coisas. Ele já ia em quatro ou cinco Ekas, a
cerveja que ele gostava. Começava a arrastar as palavras. Eu achava que ele
tinha que parar, eu então o canhão ficava sem munição...
Ele, não me respondeu logo.
Olhou para o chão, limpou o nariz com as costas da mão e bebeu mais um gole.
Então, de que tem medo?,
insisti.
Ele olhou para mim, depois
olhou ao redor, parecia ter medo que o ouvissem e balbuciou algo que não
percebi nada.
Desculpe KarbolovuloKiala,
(conforme pronunciava o nome, esforçava-me por parecer natural) não entendi.
“Estou a crescer!”, disse-me
ele quase ao ouvido e já deitando um bafo de cerveja, capaz de embebedar
qualquer um!
De facto, um anão só tem
emprego num circo por ser pequeno. Quanto mais pequeno, melhor.
“Estou a crescer quase todos
os dias!”
Verdade?, mas olhe que eu
tenho-o visto há uma semana todos os dias e não noto nada.
“Mas eu sei!”disse
perentoriamente!
Karbo, deixe-me tratá-lo por
Karbo, pode ser?
“Claro!”
Olhe, você vá descansar um
pouco, porque logo tem trabalho e você não pode faltar. Aí, sim, pode ser
despedido. Ele concordou e foi embora, pegando na sua bengala de madeira e
cambaleando um pouco.
Fiquei a matutar no assunto
e em conversa com Kalukembe, contei a estória do anão. “Eh pá, ele já é kota e
bem kota, já não pode crescer!”
Tens razão, deve ser um
problema na cabeça do sócio KarbolovuloKiala! (ao pronunciar o nome, o velho
Kalu, começou a rir bué e não conseguia parar) Sabes como é são estas coisas
desta gente diferente. Têm complexos que chega! Vamos tentar ajudá-lo, coitado.
Vamos medi-lo todos os dias, que dizes?
“Boa! Vou fazer umas marcas
na parede com a fita métrica.”
Bem, o circo tem sido um
sucesso há meses.Todos os dias com enchentes e o Homem-Bala era o maior sucesso.
Mas Karbo, continuava triste apesar de nós o medirmos todos os dias e nem um
centímetro crescia! Aliás, fizemos a marca da altura dele e da bengala.
“Como pode ser isso, se eu
sinto a bengala mais baixa e o Maló nota que eu estou mais alto?!, se eu estou
mais alto, é porque ele está mais baixo, porra!", quase que gritava com
desespero!
Óh pá, isso é outra coisa!
Já podias ter dito!, com o convívio, já nos tratávamos por tu! Esta conversa
fazia-me pensar noutra coisa entre os anões. Os sapatos, têm sempre um salto
muito alto, para disfarçar a sua pequena estatura, por isso eles usam duas
bengalas; uma mais alta, para fora do circo, outra, mais baixa, para quando
estão no circo.
Karbo, tu achas que o Maló
está mais baixo que tu?
“Claro, ele já fez a medição
várias vezes, no quarto onde dormimos os dois e ele está mais baixo que eu!”
Bem, nesse caso, estás a
crescer, não há dúvida!
Kalu olhou para mim e fez
uma careta, dando a impressão que duvidava. Quando Karbo se foi embora para o
trabalho, perguntei ao Kalukembe o que ele pensava.
“Então pensa comigo, nós há
quase um ano que medimos o kamba Karbo todos os dias e ele não cresceu nem um
milímetro, como é que o outro está mais baixo que ele? Só se é o outro que está
a minguar, o que não acredito. Portanto, aqui há coisa...”
Fazia sentido isto! Fui para
casa pensar no assunto.
No dia seguinte, Karbo não
apareceu. Nem nos dias seguintes.
Um dia cheguei ao Bar, um
pouco mais cedo, porque lá na fábrica não se pôde trabalhar, porque a luz
faltou e não voltou. Mais um dia sem trabalho, mais prejuízo para a nação.
Sentei-me na mesa habitual com os meus colegas e esperámos pelo pitéu para
pancarmos.
Veio o velho Kalukembe, a
disparatar com a mulher porque ela estava a demorar a fazer a feijoada e o
pessoal à espera do panquê. Ele sentou-se connosco e ficou ao meu lado enquanto
o empregado veio atrás dele com a cerveja para todos. “Hoje vamos beber, como
está, melhor não há!”, rimos todos com a piada dele. Não perdi tempo e dei-lhe
uma cotovelada para ele olhar para mim e disse-lhe que era preciso falar do
Karbo.
Entretanto D. Maiomona,
trouxe a desejada feijoada. Cheirava que era uma delícia. Enquanto nos
servíamos, vejo pela janela que ficava à minha frente, o pequeno Karbo, quase
sem bater com bengala no chão, muito sorridente, atravessando a rua na nossa
direcção.
Ao entrar, mandei-lhe uma
boca chata, daquelas que não dão tempo de pensar, “não me digas que agora
encolheste!”, ele e os outros olharam para mim como que a reprovar o que disse,
enquanto eu fazia um sorrizinho estúpido, metendo o gargalo da garrafa, como se
isso trouxesse de volta a palavra já dita.
KarbolovuloKiala, com o ar
mais feliz de sempre, falava a gritar, tal era o entusiasmo.
“Descobri!, o sacana do
Maló, invejoso do meu sucesso, estava a tentar que eu fosse despedido. Ele
estava a serrar, de vez em quando, a minha bengala, para eu pensar que eu
estava a ficar mais alto.”
Mas nós avisámos-te que não
estavas a crescer!, nós medimos-te, nós sabíamos!
“Pois, mas ele não aguentou
a pressão e notou que vocês me ajudariam cada vez mais, e sentiu a ameaça que a
qualquer hora seria descoberto”.
Eh pá, isso não pode ser meu
kamba, tu mesmo disseste que ele estava mais baixo! Portanto, não pode ser, não
venhas agora endrominar-nos.
Karbo, olhou para nós, bebeu
uns bons goles, com um à-vontade nunca visto. Todos ficámos à espera, ansiosos,
da resposta dele. Ele levantou-se, isto é, colocou-se de pé em cima da cadeira,
e disse com voz grave e calma:
“Ele, para garantir que
ficava mais baixo, serrava os tacões dos seus próprios sapatos, para eu ter a
impressão que estava mais alto que ele. Ao mesmo tempo, serrava a minha bengala,
para eu ter de me curvar cada vez mais e ter a sensação de estar mais alto.”
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GLOSSÁRIO
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Avilo---------companheiro
Bikuatas --- seus pertences
Bué-----------muito
Jindungo ---picante
jinguba------amendoim
Kamba------amigo
Kota---------velho
Pancar------comer
Panquê-----comida
Sambila----gíria do nome do
bairro Sambizanga
*João Pessoa*
*(contista
angolano)