"Turbulência"
(Tela a óleo de Alim)
DOUTORES, POETAS, E UMA TROVA*
Que lamento… os quadrúpedes destruíram os bípedes… ficaram feras em festim que infestam o reino com festas.
Uma invasão de predestinados, doutores e poetas institucionalizados. Poetas, todos com o dom que Deus lhes deu. Doutores evidenciados, anunciam-se:
- A montante e a jusante do sistema desestruturado, ainda sem condições psicológicas objectivas e subjectivas, de efeitos endógenos e exógenos, porque as estruturas não confinam, foram-se, estão debalde abaladas. É o binómio da aderência positiva e do saneamento básico do meio.
E o auditório em uníssono aplaude a sapiência do grão-mestre.
Com o analfabetismo a oitenta, noventa por cento, os doutores e poetas excedem as esquinas. Nestas se acotovelam, atropelam-se, e não têm Muro das Lamentações. Donde repentinamente veio tal avalanche de avatares? Ninguém sabe, mas desconfia-se que é devido às alterações climáticas, ao calor abrasador que faz ferver os cérebros. E já se instituiu a novel classe social do doutor coronel-poeta, doutor novo-rico, poeta novo-rico. É a abertura da marcha do desenvolvimento económico e social. É mais fácil ser superficial, porque aprofundar exige muito trabalhar
O estatuto de doutor e poeta permite-lhes reuniões, debates, conferências, seminários, assembleias, tertúlias, e agenda nacional de consenso, onde no fim os participantes descobrem estupefactos que não há consenso. Há unanimidade em que as questões económicas e sociais de um país decidem-se com intermináveis conversas. Desconhece-se quem está disposto a trabalhar. Um participante desiludido questionou:
- A democracia é a aspiração do voto em dias melhores que nunca surgem. É o eterno voto de permanecer sempre na mesma. As tradições orais foram-se, perdemos a nossa identidade cultural. O desenvolvimento económico e social é sustentado pelos doutores e poetas dos planos quinquenais. O melhor desenvolvimento económico é matar o povo à fome. E a militância poética glorifica os feitos dos reis do petróleo. Ah!.. poesia da terra oca, vazia, sem conteúdo, irrealidade virtual.
E o poeta militante, milita, afia as goelas, palavreia:
Os meus punhais anoitecem, na destruição sistemática
Do que resta, já foi, já era, não será
Punhais ferrugentos, das águas impuras
Corroídos, perdidos nos quilombos. Corruptos, corrompidos!
Ao libertarmo-nos do colonialismo tínhamos o desejo do regresso
Aos nossos gloriosos eternos quilombos. Estamos imensamente felizes
Todos mandamos, somos chefes, somos a anarquia
Somos livres na nossa feitiçaria, na nossa anarquia
E quem é que manda? Os donos do petróleo e diamantes!
Ser patriota, é passar fome, nunca venceremos esta guerra
Porque é atrozmente difícil. Fácil é carregar no gatilho
Sem bibliotecas públicas, e com milhões de gatilhos
Pereceremos vencidos, vendidos à fome.
Dos poderes da magia, eis que surge o último trovador profissional da tradição oral:
- Bantus, à procura do Graal, da perdida tradição oral! Canto a trova dos deserdados das fortunas, desesperançados da riqueza aviltados. Nos poderes exteriorizados. Poder, são os povos a sofrer. O poder da miséria é histórico. Morrer, padecer à fome é um acto heróico. São tantos os soldados conhecidos. A vida da miséria é revivida. Nos tostões parcos da despedida. O poder de Kalunga é incomensurável. Só nos lembramos Dele quando a miséria bate brutalmente no coração. Que antes era ferro ferrugento, e que repentinamente se purifica. E a lepra subsiste. Símbolo da miséria é andar de mão estendida, com o filho às costas, a chorar, a desesperar. Por entre carros desumanizados, sem conseguir mendigar. Os passos encurtam-se, está a acabar a luz solar. O chão de dormir endurece a noite sem luar. Fome é desfalecer, desarrumar a esperança sem forças para lutar. É triste morrer só, abandonado em qualquer lugar. A fome não tem moradas, mas os seus caminhos estão localizados. Os ignaros sacralizam-nos, presenteiam-nos os caminhos da fome. Sem estrada, ponte, rua, sem nada. Os abarrotados protegem-se oprimindo os miseráveis. Os miseráveis bebem água inquinada, os abarrotados água engarrafada. O calendário da vida está prenhe de dias injustiçados.
Pausa, retoma a memória:
- Fora de questão: não é o menino das chuvadas, é o homem.
É isso! E num país de sol ardente um carro aportado, abortado sem ar condicionado. As pessoas estão sempre a morrer e a nascer, a chorar e a cantar. Uns vão mais cedo, outros mais tarde. Mas todos vão. Idiotas com uma bandeira e um hino! A questão é: sem um tostão. Isto não é uma nação, é o fundamentalismo da escravidão. Uma agenda sem consenso, sem referendo da fome.
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*Gil Gonçalves*
*(um português algures em Angola; conto original, 2007)