E porque hoje é Dia da Criança Africana!*
*“(…) À noite, na sala de visitas, Raquel abriu, curiosa, o canal do seu futuro emprego, TV Estrelas Notícias, para apreciar o seu funcionamento técnico. Apresentaram‑se dois locutores, com cerca trinta anos. Ele. Ela. Ele vestia um fato cinzento, camisa branca e gravata encarnada. O cabelo impecavelmente cortado e a postura do corpo bastante correcta. Ela vestia um casaco escuro sobre uma camisa encarnada. Os cabelos eram negros e compridos. Traziam na cara um brilho rosado e um ar pleno de responsabilidade. Os dedos remexiam levemente quando a fonética denunciavam pequenas falhas.
Ela: «A fome no Sudão. Um drama que já matou mais de sessenta mil pessoas num ano.»
Ele: «Fome é hoje a bandeira do Sudão, assombrado pelo sofrimento das crianças, com índices de desnutrição dramáticas, olhos afundados e cabelos finos sem cor, a pele enrugada como pessoas idosas.»
Ela: «As mães, desidratadas, não conseguem alimentar os filhos. As crianças são verdadeiras migalhas humanas, deitadas na poeira como se fossem nascidas de um mundo de terror.»
Ele: «O gado encontra‑se esquelético sobre fantasmas da morte.»
Ela: «Ao Norte do Mariel Lou, os conflitos continuam com frequência entre dois clãs do Dinka, o Aliek e o Longkpak. As pessoas fogem para sul. Há crianças desaparecidas cujo destino se desconhece.»
Ele: «O economista americano Jeffrey Sachs diz que, com a ajuda dos países ricos, em duas décadas, seria possível erradicar a miséria em todo o mundo. Seguem‑se imagens capazes de ferir a susceptibilidade dos telespectadores.»
As imagens eram silenciosas e horripilantes.
A mulher negra, só pele e osso, desolada, encontrava‑se sentada no chão poeirento. Vestia um pano de chita estampado a cobrir o corpo. Num braço, trazia uma filha cujo olhar de medo expressava o espasmo da fome. No outro braço, trazia o filho esgazeado, a lamber com sofreguidão as lágrimas grossas que lhe caíam pela cara. As crianças embalavam a esperança no fim do conflito, com os trinta e quatro anos de guerra civil. Milhões de mortes. A inércia sem resoluções de entendimento. O Sudão.
Raquel sentia‑se amargurada e triste. Acendeu um cigarro e suspirou. Esmaecida, ergueu‑se, desligou a televisão e dirigiu‑se à cozinha. Arranjou um copo de água com açúcar. Bebeu.
«Que mundo é este em que vivo?», perguntou‑se, aturdida. «Não acredito que este planeta não seja o mais atrasado do Universo! Que esperam os extraterrestres para o invadir e transformá‑lo num deserto igual a Marte? Não habitado!» (…)”
*Ana Paula Castro*
*(romancista angolana-portuguesa; extracto da obra “Sou Jornalista, você é árabe?”, a apresentar dentro de dias; edição da Editorial Novembro)
Ela: «A fome no Sudão. Um drama que já matou mais de sessenta mil pessoas num ano.»
Ele: «Fome é hoje a bandeira do Sudão, assombrado pelo sofrimento das crianças, com índices de desnutrição dramáticas, olhos afundados e cabelos finos sem cor, a pele enrugada como pessoas idosas.»
Ela: «As mães, desidratadas, não conseguem alimentar os filhos. As crianças são verdadeiras migalhas humanas, deitadas na poeira como se fossem nascidas de um mundo de terror.»
Ele: «O gado encontra‑se esquelético sobre fantasmas da morte.»
Ela: «Ao Norte do Mariel Lou, os conflitos continuam com frequência entre dois clãs do Dinka, o Aliek e o Longkpak. As pessoas fogem para sul. Há crianças desaparecidas cujo destino se desconhece.»
Ele: «O economista americano Jeffrey Sachs diz que, com a ajuda dos países ricos, em duas décadas, seria possível erradicar a miséria em todo o mundo. Seguem‑se imagens capazes de ferir a susceptibilidade dos telespectadores.»
As imagens eram silenciosas e horripilantes.
A mulher negra, só pele e osso, desolada, encontrava‑se sentada no chão poeirento. Vestia um pano de chita estampado a cobrir o corpo. Num braço, trazia uma filha cujo olhar de medo expressava o espasmo da fome. No outro braço, trazia o filho esgazeado, a lamber com sofreguidão as lágrimas grossas que lhe caíam pela cara. As crianças embalavam a esperança no fim do conflito, com os trinta e quatro anos de guerra civil. Milhões de mortes. A inércia sem resoluções de entendimento. O Sudão.
Raquel sentia‑se amargurada e triste. Acendeu um cigarro e suspirou. Esmaecida, ergueu‑se, desligou a televisão e dirigiu‑se à cozinha. Arranjou um copo de água com açúcar. Bebeu.
«Que mundo é este em que vivo?», perguntou‑se, aturdida. «Não acredito que este planeta não seja o mais atrasado do Universo! Que esperam os extraterrestres para o invadir e transformá‑lo num deserto igual a Marte? Não habitado!» (…)”
*Ana Paula Castro*
*(romancista angolana-portuguesa; extracto da obra “Sou Jornalista, você é árabe?”, a apresentar dentro de dias; edição da Editorial Novembro)