O que é este Blogue?

Quando se junta uma amálgama de palavras, um conto ou um poema podem sempre emergir. A sua divulgação fará que não morram esconsos numa escura e funda gaveta. Daí que às minhas palavras quero juntar as de outros que desejem participar. Os meus trabalhos estão publicados sob o pseudónimo: "Lobitino Almeida N'gola". Nas fotos e pinturas cliquem nos nomes e acedam às fontes.

quarta-feira, dezembro 16, 2009

Água

"Sede D’ Alma"
(Tela de Naná Almeida; da exposição de artistas
angolanos em Lisboa, “Arte da Paz III”, Abril de 2009)

Água*

Água!

abriu a torneira
nem um fio

foi ao riacho
sem uma gota

abriu um poço
nem um lençol

olhou p’ro céu
além despossuído

fechou-se em si
bem desidratado

Ááááguaaaaa…
Ááááguaaaaa…aaa…aa…a…
Nesse dia o homem morreu!

*Roderick Nehone*
*(pseudónimo de Frederico Santos e Silva Cardoso; poema datado de 26.5.1983 e incluído no livro “Génese” ,galardoado, em 1996, com o prémio António Jacinto)

segunda-feira, novembro 30, 2009

Regressei aos teus braços

"Noiva Rica Muíla"
(Tela de Toia Neuparth)


Regressei aos teus braços*

Oh querida terra mãe!
A tristeza podes apagar.
Regressei aos teus braços,
que provam a força dos nossos laços
aos homens que os tentaram quebrar.
Na companhia de Deus te revi
e só Ele sabe como te senti.
Ao chegar, logo estendeste a mão.
Aí começou a minha emoção,
que se apoderou de mim
entrelaçada no teu calor sem fim.
Fui até à Huíla.
A sua vila visitei.
Aí, senti a sua gente tranquila,
onde me reencontrei.
Os espíritos antepassados me falaram
porque a minha alma encontraram.
Com deus os revi assim,
para os recordar no tempo sem fim!

*Jorge Rodrigues de Caluquembe*
*(Geógrafo, ensaísta e romancista angolano; poema extraído do romance «Chicoronho» apresentado a 27 de Novembro de 2009, na Casa de Angola, Lisboa)

terça-feira, outubro 20, 2009

Ó África Pátria Do Mundo

"Dibujo"
(Desenho de João Craveirinha, Brasília, 2009)


Ó África Pátria Do Mundo*

Ó África Pátria do Mundo
Enquanto te espreguiças
Numa letargia sem fim
O Mundo lá fora implacável
Prossegue
Na senda auto-destrutiva
Do Planeta e de Ti

Ó África Pátria do Mundo
Teus filhos no poder
O que fazem então?!
Aconchegados nos sofás dos Mercedes
Com whisky e televisão!?
Importados, longe do sertão
(Made in Germany, UK e Japão)
Enquanto seus súbditos minguam
Sem um tostão
Nas sobras dos donativos
Fora de prazo
Sobrevivem
Nas lixeiras do egoísmo
Sem chegarem a viver
Um dia sequer
Circulando como zombies
No supérfluo do luxo no entulho

Ó África Pátria do Mundo
Antigos guerrilheiros comandantes
Combatentes da outra Liberdade
Esquecida democraticamente
Em nome da modernidade
Globalizada nas contas bancárias
E nas propinas recebidas
A troco da penhora do País.

Ó África Pátria do Mundo
Reage
E diz-me que é só um pesadelo
Que amanhã é outro dia
E tu renovada surgirás
Enfeitando tuas crianças
De flores, pão, amor
Livros e solidariedade
“Na mesa da fraternidade”
Como um teu descendente
Na América disse,
Também um dia
Que tinha um sonho!

Ó África Pátria do Mundo


*João Craveirinha*
*(Poeta, contista e artista plástico moçambicano; feito em Olisipo, 29 Outubro 2008 / Quarta-feira, inicialmente publicado no “
Recanto das Letras” e cedido pelo autor)

terça-feira, setembro 01, 2009

Presença

"Mulher Bosquimane e filho"
(Pintura de Toia Neuparth; descaradamente ximunada
daqui)

Presença*

E apesar de tudo
ainda sou a mesma!
Livre e esguia,
Filha eterna de quanta rebeldia
Me sagrou.
Mãe-África!
Mãe forte da floresta e do deserto,
ainda sou
a irmã-mulher
de tudo o que em ti vibra,
puro e incerto!

– A dos coqueiros,
de cabeleiras verdes
e corpos arrojados
sobre o azul…
A do dendém
nascendo dos braços das palmeiras…
A do Sol bom, mordendo
o chão das Ingombotas…
A das acácias rubras,
salpicando de sangue as avenidas
longas e floridas…

Sim! Ainda sou a mesma…
– A do amor transbordando
pelos carregadores do cais
suados e confusos,
pelos bairros imundo s e dormentes
(Rua 11… Rua 11…9
pelos negros meninos
de barriga inchada
e olhos fundos…

Sem dores nem alegrias
de tronco nu e corpo musculoso
a raça escreve a prumo,
a força destes dias…

E eu, revendo ainda
e sempre, nela,
aquela,
longa história inconsequente…

Terra!
Minha, eternamente!
Terra das acácias
dos dongos,
dos cólios baloiçando
mansamente… mansamente!...
Terra!
Ainda sou a mesma!
Ainda sou
a que num canto novo,
pura e livre,
me levanto
ao aceno do teu Povo!...

*Alda Lara*
*(poetisa angolana; poema publicado no Jornal de Benguela e transcrito na “Antologia Poética Angolana”, col. Imbondeiro, 1963)

Luanda

"Entrada do Porto de Luanda e o Largo 4 de Fevereiro"
(Foto Elcalmeida, Maio de 2009)


Luanda*

Gosto dela à noite
a horas esquecidas

Gosto dela quando mais
ninguém anda cá fora
e a sinto toda minha…

O sei corpo grande e negro
é quente e generoso,
e os ruídos no escuro
cães ladrando, carros longe
galos, meninos chorando…
fazem uma sinfonia
morna, calma e tropical
como se fosso o respirar
de alguém que descansa.

É por isso

Que eu gosto de Luanda
a horas esquecidas…

Olho o seu corpo, grande,
o seu corpo negro e generoso
e sinto uma ternura especial

Como se fosse o corpo conhecido
duma amante saciada e adormecida
que se olha com amor e com cansaço
e depois se recorda com saudade.

*Neves e Sousa*
*(poeta e artista plástico angolano nascido em Portugal; poema da obra “Batuque” e transcrito na “Antologia Poética Angolana”, col. Imbondeiro, 1963)

quinta-feira, junho 04, 2009

Ser Tigre

"Mulheres na Praia da Ilha"
(Pintura de Bossa(?); pertence à colecção da Univ. Lusíada de Angola; Luanda)


Ser Tigre*

O tigre ignora a liberdade do salto
é como se uma mola o compelisse a pular.

Entre o cio e a cópula
o tigre não ama.

Ele busca a fêmea
como quem procura comida.

Sem tempo na alma,
é no presente que o tigre existe.

Nenhuma voz lhe fala da morte.
O tigre, já velho, dorme e passa.

Ele é esquivo,
não há mãos que o tomem.

Não soa,
porque não respira.

É menos que embrião
abaixo do ovo,
infra-sémen.

Não tem forma,
é quase nada, parece morto.

Porém existe,
por isso espera.

Epopeia, canção de amor,
epigrama, ode moderna, epitáfio,

Ele será
quando for tempo disso.

*Arménio Vieira*
*(poeta cabo-verdiano, Prémio Camões 2009; poema retirado
daqui e publicado inicialmente em "Vozes poéticas da lusofonia", Sintra, 1999)

sábado, abril 25, 2009

Foi há 35 anos!

(paquete Infante D. Henrique)

Foi há 35 anos!*

Há 35 anos convivia num grande ndongo ondulante,
o mar de São Tomé tornava a vista realçada
a rádio BBC convertia-se na voz da revelação
o Retorno mostrava a coibida saciada ambição.
Em Portugal menos de um ano estive;
transviado,
descontente,
desarvorado
e desambientado
xingando vivia.
Menor, aos progenitores obedecia
sempre com a alma algures perdida
nas cálidas paisagens flutuando
lá longe onde sol mais supliciava,
pois sabia que era lá que o meu desígnio estava.

A 19 de Abril, o Tejo o navio viu abalar,
as imbambas no bojo flutuante folgavam;
eu, e outros eus como tais,
detínhamo-nos
ora na coberta,
ora na escotilha,
quais vigias, quais,
o horizonte sondando
quais akongos alertas
o quadrado mais amado de África.
Mas há 35 anos Portugal reformava
e cravos rubros negras armas silenciavam;
tingidos do sangue espargido
abriam o caminho da Liberdade.

Na linha que o Ilhéu das Rolas corta,
o grande ndongo pifou,
assim o grande fumu o verbalizava;
mas o problema era só um
será que continuava
ou a Lisboa o barco voltava?
Na altura, como hoje,
a São Tomé o batel não aportava;
e nas cálidas águas equatorianas
o navio vogou, vogou, vogou
e só três dias depois a Luanda rumou.

A 1 de Maio a bela Kianda
destapada da noite emergia
brilhando numa omere tchitekateka radiosa;
a baía muxiluanda abraçava-nos,
alegremente saudava-nos.
O reprimido desejo de vários meses
transbordava em prazenteiros bramidos,
tuembi ni tuakini;
não estava ainda na minha cidade,
na cidade dos flamingos,
mas estava, enfim, na minha Angola.
O Infante D. Henrique para trás deixei
novo rumo procurava,
o fim da guerra se adivinhava,
um País grande e fraterno poderia emergir;
mas quis o destino, 35 anos depois,
esta curta mukanda escrever
onde tudo se despoletou.
E o Tejo muanza, calmo,
estranhamente calmo,
o segundo retorno espera que realize;
quem sabe, quem sabe,
se sapientemente
com o pescoço espetado qual onduli
tudo não voltará acontecer
como há 35 anos,
num dikamba Maio africano …

Glossário:
ndongo (Kimbundo): canoa de madeira;
imbambas (Mbundo): mercadorias, tralhas:
akongos (Kikongo): caçadores;
fumu (Kimbundo): senhor;
Kianda: Luanda;
omere tchitekateka (Umbundo): ao nascer do dia; aurora; amanhecer;
muxiluanda (Kimbundo): natural da ilha de Luanda;
tuembi ni tuakini (Kimbundo): cantando e dançando;
mukanda (Kimbundo): carta;
muanza (Kimbundo): rio;
onduli (Umbundo): girafa;
dikamba (Kimbundo): amigo.


*Lobitino Almeida N'gola
Lisboa, 24 de Abril de 2009

quinta-feira, abril 23, 2009

Pelo Dia Mundial do Livro e dos Direitos de Autor

A foto (pode na mesma clicar para aumentar) inclui livros que escrevi ou onde dei o meu contributo, além dos inúmeros artigos publicados e dos apontamentos no Pululu:

Ensaios: "Fundamentalismo Islâmico, A Ideologia e o Estado", 2003; "África, Trajectos políticos, Religiosos e Culturais", 2004, ambos publicados pela editora Autonomia 27; (os dois tiveram por base a minha Dissertação para o Mestrado);

Poesia: "II Antologia de Poetas Lusófonos" (podem encontrar-me entre as páginas 152 e 156), da editora Folheto, Edições e Design, 2009;

Prefácios em ensaios: "Alto Hama, crónicas (diz)traídas", de Orlando Castro, edição de Papiro Editora, 2006; e "Dicionário de administração Eleitoral, Organização de Eleições Democráticas, Transparentes e Livres", de Jorge Castelo David, edição do autor, 2008.

sábado, março 21, 2009

Saudades de Angola

"Nu ao luar"
(Pintura em pastel de
Thó Simões)

Saudades de Angola*

Duas palavras existem
que de tão fortes
quanto poderosas
definição não têm.

E quando cá longe andamos
e as duas desabusadas se associam,
tão penosas se trasladam
em alma expatriada menstrua.

Uma, etérea,
de Saudade se apelida;
outra, qual sublime arte terrena
por Angola assim se clama!

Tudo se define,
e quase tudo se compreende;
se a Saudade é algo que se sente,
Angola é fogo presente sempre ardente!

*Lobitino Almeida N'gola
(Lisboa, 21.Março.2009, pelo Dia Mundial da Poesia)

sexta-feira, fevereiro 27, 2009

Punhal na alma... pelas costas

"Barco Moliceiro, Turismo na Ria de Aveiro"
(Foto de ©Elcalmeida, Verão de 2008)


Punhal na alma... pelas costas*

Na vida das esquinas
encontrei esquinas
que me apontaram a vida
que, afinal, estava mesmo
ao dobrar da esquina.
Apesar disso chorei
quando senti o punhal
entrar-me pela alma
sem verter uma gota de sangue
porque esse jazia
sonolento num corpo perdido
na madrugada que anoitecia
sem se lembrar da poesia
que nascera décadas antes
nos córregos sinuosos
de uma saudade castigadora
bem mais lancinante
do que o punhal que me feriu
a alma e que, mais uma vez,
foi espetado pelas costas.

*Orlando Castro*
*(jornalista, poeta e contista angolano-português; poema originalmente publicado
aqui)

Foi aquém e foi além

"Fenda da Tundavala, Huila, Angola"
(Foto de ©Nuno Silva Leal, ‘visitando o Lubango’;
daqui)

Foi aquém e foi além*

Aqui, onde quem estou, serei.
Onde meu corpo é sinal de procura,
sinal de um mar para onde vou.
Onde o verso me dará quem sou.
Onde versos e versos me levam ao segredo.

Sim, deixa dizer em segredo deste pedaço de procura,
deste resto de música que, de mais além me dá sinal.
Deixa dizer meu sonho
e seguir o sonho de um mar por cumprir.

Porque, para os outros que me lêem,
não posso dizer tudo quem sou.
Os breves recantos onde me guardo.
Os sinais que me dão segredo.

*José Adelino Maltez*
*(Cientista político; poeta português – poema retirado
daqui)

sexta-feira, janeiro 30, 2009

Viagem

Sem título
(Tela de António Aly Silva, 2002;
daqui)

Viagem*

O beijo da quilha
na boca da água
me vai trocando entre céu e mar,
o azul de outro azul,
enquanto
na funda transparência
sinto a vertigem
da minha própria origem
e nem sequer sei
que olhos são os meus
e em que água
se naufraga a minha alma

Se chorasse, agora,
o mar inteiro
me entraria pelos olhos

*Mia Couto*
(Escritor moçambicano; retirado do livro”Poemas Leya” e originalmente publicado na obra “Raiz de Orvalho”)

A alma é como a lavra

"A invocação mágica de Alma Welt"
(Óleo sobre tela de
Guilherme de Faria, 2007)

A alma é como a lavra*

A alma é como a lavra.
Quando as nossas mãos voltam a desfiar
O milho amarelo de ouro?
Que outras mãos que as nossas semeiam
O medo e o silêncio da morte?
Porquê este frio? Porquê tão longa a noite?
Como se faz o mundo? Quando começa o mundo?

*Maria Alexandre Dáskalos*
*(Poetisa angolana; retirado do livro”Poemas Leya” e originalmente publicado na obra “Jardim das Delícias”, 2003)