O que é este Blogue?

Quando se junta uma amálgama de palavras, um conto ou um poema podem sempre emergir. A sua divulgação fará que não morram esconsos numa escura e funda gaveta. Daí que às minhas palavras quero juntar as de outros que desejem participar. Os meus trabalhos estão publicados sob o pseudónimo: "Lobitino Almeida N'gola". Nas fotos e pinturas cliquem nos nomes e acedam às fontes.

sábado, agosto 25, 2007

Que belo é amar

"The embrace"
(Tela de
Pablo Picasso(1881-1973), de 1970)

Que belo é amar*

Que belo é amar
quando se ama a dois,
triste é acabar
e sofrer o que vem depois.

Mesmo sem alarde
ele toca toda a gente,
é esse fogo que arde
e essa dor que não se sente.

Fecunda a loucura
no horizonte de um beijo,
toda a gente o procura
como único desejo.

É a fonte da vida,
da morte e do além.
Em sua guarida
somos sempre alguém.

Encontramo-lo no cemitério
onde o ódio jaz.
É sempre um belo mistério
que nos ama e dá paz.

Renasce no dia a dia
e é incólume ao mal.
Por renascer em cada poesia
é eterno, é imortal.

*Orlando Castro*
*( jornalista, poeta e contista angolano-português; poema inicialmente publicado
aqui)

sexta-feira, agosto 24, 2007

Conto angolano 6: A Sexa e o Bâmbi

"Amizade"
(Tela de Pablo Picasso; penso estar no Museu Hermitage, SanPetersburg)


A Sexa e o Bâmbi*

Amigo Sexa**, em testemunho de amizade, convidou o compadre Bâmbi** a um passeio a sua terra. Dias depois, amigo Bâmbi, para experimentar a cordialidade de amigo Sexa, confidencia-lhe:
- Sabes? Gosto muito da tua irmã!
- Se gostas dela, espera, que eu te preparo as conversas.
Amigo Sexa transmitiu a revelação à família. A rapariga anuiu. E amigo Bâmbi passou a namorá-la.
Mais uns dias volvidos, amigo Sexa anunciou ao amigo a abalada, tinha de retomar o serviço. Amigo Bâmbi, para provar novamente a estima a casa, finge-se doente. O amigo adia a partida.
Amigo Bâmbi continua sem se levantar. Consultam-se quimbandas. Mas todos declaram que aquilo não era doença, antes um fingimento.
- É compadre, tu afinal não tens nada! Vamo-nos embora! – Roga-lhe amigo Sexa.
Amigo Bâmbi suspira:
- Estou envergonhado compadre!
Daí a dias, fazia-se morto. Amigo Sexa prepara-se para arranjar uma tipóia – esteira atada a um pau – para o enterrar. Antes de sair ainda lhe diz ao ouvido:
- É compadre, vamos enterrar-te! Por que não te levantas?
- Auâ! Enterrem-me já! Estou envergonhado!
- Mas estás envergonhado de quê? Não roubaste, não puseste crime, não deves a ninguém…
- Deixa-me só, compadre! Estou envergonhado!
O corpo é deposto na tipóia. Já na altura do enterramento, o amigo Sexa introduz-se na cova para incomodar o amigo.
- Compadre, vamos mesmo enterrar-te! Não está a ouvir que já te pusemos na cova? – Murmura-lhe pela derradeira vez.
- Já disse: enterrem-me! Estou envergonhado!
- Mas vergonha de quê? Não roubaste, não puseste crime, não deves a ninguém… Vamos só, aqui não há parvoíce! Levanta-te, morres mesmo!
- Exi! Fico mesmo! Estou envergonhado!
Perante tal obstinação, amigo Sexa sacode o companheiro. Mas nada! Para o demover, pede aos assistentes que o enterrem também.
A família opõe-se. Eh! eh! eh! Estava ele porventura doido ou bêbado para querer enterrar-se vivo? Saísse do buraco, deixasse o outro, que já tinha morrido!
E amigo Bâmbi, pela sua vergonha, acabou por ser enterrado.

(Conto narrado por Virgínia Francisco dos Santos, uma septuagenária do Dondo)

** Sexa: cabra selvagem de pequeno porte que abunda sobretudo nas matas do Norte do país; corsa.
** Bâmbi: cabra selvagem que prolifera por todo o país: cabrito do mato


*Óscar Ribas*
*(contista, ficcionista e etnólogo angolano (Ago/1909-Jun/2004); conto retirado no livro “Misoso”, 1º volume)

Quem sou eu?

"Entreposto de escravos"
(Aguarela de
Johann-Moritz Rugendas, representando um comboio de escravos estacionado em um rancho no interior do Brasil do século XIX)

Quem sou eu? (Bodarrada)*

Amo o pobre, deixo o rico,
Vivo como o Tico-tico;
Não me envolvo em torvelinho,
Vivo só no meu cantinho;
Da grandeza sempre longe
Como vive o pobre monge.
Tenho mui poucos amigos,
Porém bons, que são antigos,
Fujo sempre à hipocrisia,
À sandice, à fidalguia;
Das manadas de Barões?
Anjo Bento, antes trovões.
Faço versos, não sou vate,
Digo muito disparate,
Mas só rendo obediência
À virtude, à inteligência:
Eis aqui o Getulino
Que no pletro anda mofino.
Sei que é louco e que é pateta
Quem se mete a ser poeta;
Que no século das luzes,
Os birbantes mais lapuzes,
Compram negros e comendas,
Têm brasões, não - das Kalendas;
E com tretas e com furtos
Vão subindo a passos curtos;
Fazem grossa pepineira,
Só pela arte do Vieira,
E com jeito e proteções.
Galgam altas posições!
Mas eu sempre vigiando
Nessa súcia vou malhando
De tratante, bem ou mal,
Com semblante festival
Dou de rijo no pedante
De pílulas fabricante
Que blasona arte divina
Com sulfatos de quinina
Trabusanas, xaropadas,
E mil outras patacoadas.
Que, sem pingo de rubor
Diz a todos que é DOUTOR!
Não tolero o magistrado,
Que do brio descuidado,
Vende a lei, trai a justiça
- Faz a todos injustiça –
Com rigor deprime o pobre
Presta abrigo ao rico, ao nobre,
E só acha horrendo crime
No mendigo, que deprime.
- neste dou com dupla força,
Té que a manha perca ou torça.
Fujo às léguas do lojista,
Do beato e do sacrista –
Crocodilos disfarçados,
Que se fazem muito honrados
Mas que, tendo ocasião,
São mais feros que o Leão
Fujo ao cego lisonjeiro,
Que, qual ramo de salgueiro,
Maleável, sem firmeza
Vive à lei da natureza
Que, conforme sopra o vento,
Dá mil voltas, num momento
O que sou, e como penso,
Aqui vai com todo o senso,
Posto que já veja irados
Muitos lorpas enfurnados
Vomitando maldições,
Contra as minhas reflexões.
Eu bem sei que sou qual Grilo,
De maçante e mau estilo;
E que os homens poderosos
Desta arenga receosos
Hão de chamar-me Tarelo
Bode, negro, Mongibelo;
Porém eu que não me abalo
Vou tangendo o meu badalo
Com repique impertinente,
Pondo a trote muita gente.
Se negro sou, ou sou bode
Pouco importa. O que isto pode?
Bodes há de toda casta
Pois que a espécie é muito vasta...
Há cinzentos, há rajados,
Baios, pampas e malhados,
Bodes negros, bodes brancos,
E, sejamos todos francos,
Uns plebeus e outros nobres.
Bodes ricos, bodes pobres,
Bodes sábios importantes,
E também alguns tratantes...
Aqui, nesta boa terra,
Marram todos, tudo berra;
Nobres, Condes e Duquesas,
Ricas Damas e Marquesas
Deputados, senadores,
Gentis-homens, vereadores;
Belas damas emproadas
De nobreza empantufadas;
Repimpados principotes,
Orgulhosos fidalgotes,
Frades, Bispos, Cardeais,
Fanfarrões imperiais,
Gentes pobres, nobres gentes
Em todos há meus parentes.
Entre a brava militança
Fulge e brilha alta bodança;
Guardas, Cabos, Furriéis
Brigadeiros, Coronéis
Destemidos Marechais,
Rutilantes Generais,
Capitães de mar-e-guerra
- Tudo marra, tudo berra –
Na suprema eternidade,
Onde habita a Divindade,
Bodes há santificados,
Que por nós são adorados.
Entre o coro dos Anjinhos
Também há muitos bodinhos.
O amante de Syringa
Tinha pêlo e má catinga;
O deus Mendes, pelas costas,
Na cabeça tinha pontas;
Jove, quando foi menino,
Chupitou leite caprino;
E segundo o antigo mito
Também Fauno foi cabrito.
Nos domínios de Plutão,
Guarda um bode o Alcorão;
Nos lundus e nas modinhas
São cantadas as bodinhas:
Pois se todos têm rabicho,
Para que tanto capricho?
Haja paz, haja alegria,
Folgue e brinque a bodaria;
Cesse pois a matinada,
Porque tudo é bodarrada!


Nota: No dia que se lembra a sua morte, um poema ainda muito actual. Aqui se deixa o sentido de algumas expressões:
Torvelinho = Corrupção;
Pepineira = Roubo do dinheiro público;
Arte do Vieira = Enganar;
Blasonar = Mentir;
Lorpas enfurnados = Vacilões;
Jove = Júpiter;
Bodarrada = título por que era conhecido este poema


*Luiz Gonzaga da Gama*
*(poeta
revolucionário brasileiro (1830-24/08/1882) que lutou contra a escravidão e tudo o que a ela estava associado; poema retirado daqui; também surge como “Luís Gama”)

domingo, agosto 12, 2007

Aos Poetas

“Violeiros”
(Tela de
Regina Pena)

Aos Poetas*

Somos nós
As humanas cigarras!
Nós,
Desde os tempos de Esopo conhecidos.
Nós,
Preguiçosos insectos perseguidos.
Somos nós os ridículos comparsas
Da fábula burguesa da formiga.
Nós, a tribo faminta de ciganos
Que se abriga
Ao luar.
Nós, que nunca passamos
A passar!...

Somos nós, e só nós podemos ter
Asas sonoras,
Asas que em certas horas
Palpitam,
Asas que morrem, mas que ressuscitam
Da sepultura!
E que da planura
Da seara
Erguem a um campo de maior altura
A mão que só altura semeara.

Por isso a vós, Poetas, eu levanto
A taça fraternal deste meu canto,
E bebo em vossa honra o doce vinho
Da amizade e da paz!
Vinho que não é meu,
mas sim do mosto que a beleza traz!

E vos digo e conjuro que canteis!
Que sejais menestreis
De uma gesta de amor universal!
Duma epopeia que não tenha reis,
Mas homens de tamanho natural!
Homens de toda a terra sem fronteiras!
De todos os feitios e maneiras,
Da cor que o sol lhes deu à flor da pele!
Crias de Adão e Eva verdadeiras!
Homens da torre de Babel!

Homens do dia a dia
Que levantem paredes de ilusão!
Homens de pés no chão,
Que se calcem de sonho e de poesia
Pela graça infantil da vossa mão!

*Miguel Torga*
*(pseudónimo de Adolfo Correia Rocha (!907-1955), poeta e contista português no centenário do seu nascimento; poema retirado
daqui)

segunda-feira, agosto 06, 2007

Os meus pés descalços

"Estrada da samba"
(Tela sobre Acrílio, de
Mário Tendinha “paterhu”)

Os meus pés descalços*

Os meus pés andantes
Procuram a palanca real, palanca negra
E desencantam as quedas de Kalandula
Quedas da minha terra
Oh é bela Angola
É bela Angola e são felizes os meus pés caminhantes

Os meus pés empoeirados
Acariciam subsolo rico, ouro negro a jorrar no alto mar
Ouro negro a jorrar no offshore
E no onshore
Ouro negro a brotar
Das entranhas do mar, para os meus pés esfomeados!

Os meus pés garimpeiros
Apalpam tesouros e mais tesouros
Minas de diamante, ferro, cobre, prata, ouro…
Debaixo dos meus pés ásperos
Minas de diamante debaixo dos meus pés maltratados
Debaixo dos meus pés esfomeados

Os meus pés camponeses
Galgam a terra, terra boa de agricultura
Terra boa de verdura
E farta de feijão, mandioca, milho, batata…
Terra boa, terra farta
Debaixo dos meus pés famintos e felizes

Os meus pés pescadores
Banham-se em mares ricos
Mares de garoupas, corvinas, carapau, mariscos…
E mergulham em rios fartos, Kwanza, Kubango
Keve, Bengo…
Águas fartas a banharem os meus pés sofredores

Os meus bolsos vazios
Vêem outros bolsos vazios aterrar desnutridos
E depois, bolsos cheios
A levantar voo, a embarcar abastados
Bolsos cheios a embarcar com sorrisos
A embarcar abarrotados, oh que paraíso!

Os meus pés descalços
Clamam por migalhas, clamam por pedaços
Os meus bolsos vazios
Não clamam por milhões, não clamam por rios
Os meus bolsos vazios e os meus pés famintos
Clamam somente por migalhas de alimentos!

*Décio Bettencourt Mateus*
*(poeta angolano; poema retirado da obra “Os Meus Pés Descalços”)

Carta de um Angolano no estrangeiro

"The First Wave of the Great Migration"
(Tela sobre a
história da emigração africana nos EUA, de Jacob Lawrence [1917-2000])

Carta de um Angolano no estrangeiro*

Partimos para a pedreira
Bem sabes que não é isto que queríamos
Não foi com isto que sonhámos,
Partimos para novamente sermos os contratados
E os explorados
Para sermos os sem eira nem beira

Mão de obra barata, partimos
Para construirmos e edificarmos
Com a força dos nossos braços vigorosos
E dos nossos peitos musculosos
Os prédios, as estradas, as pontes...
Em terras alheias, terras distantes

Partimos
Bem sabes que não é isto que queríamos
Tu que sonhaste com doutores e engenheiros
Agora tens-nos carpinteiros e pedreiros
A desenvolver países estrangeiros
Países dos outros

Partimos para sermos espancados
E levarmos bofetadas
Dos cabeças-rapadas
Partimos para sermos desdenhados
E chamados com desprezo, pretos!
Nestes lugares longínquos, lugares incertos

Partimos, mas não queríamos partir
Lá no Menongue queríamos construir
Os hospitais, as escolas, as pontes...
Lá queríamos erguer um arranha-céus
Para então gargalharmos desafiantes
Os brancos europeus
(Mas lá no Menongue, não aqui em Portugal
Que isto nos faz sentir mal)

Partimos
Bem sabes que nos forçaram a partir
Fugimos
Bem sabes que nos forçaram a fugir
Mas não é isto que queríamos
Não foi com isto que sonhámos

O que nós queríamos
O que nós desejávamos
É construir uma ponte
E uma auto-estrada gigante
Que unisse os corações dos angolanos,
É isto que desejamos todos estes anos

Partimos
Mas bem sabes mãe, não é isto que queríamos
Não foi com isto que sonhámos!

*Décio Bettencourt Mateus*
*(poeta angolano; poema da obra "A Fúria do Mar”)