O que é este Blogue?

Quando se junta uma amálgama de palavras, um conto ou um poema podem sempre emergir. A sua divulgação fará que não morram esconsos numa escura e funda gaveta. Daí que às minhas palavras quero juntar as de outros que desejem participar. Os meus trabalhos estão publicados sob o pseudónimo: "Lobitino Almeida N'gola". Nas fotos e pinturas cliquem nos nomes e acedam às fontes.

terça-feira, outubro 31, 2006

Memória

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“Desayuno”
(Acrílico em papel de
Alberto Rojo)


Memória*

Baloiçando nos escombros de teu itinerário
saberás que os gados constroem estradas.
E quando a mão deslizar pela margem
das cicatrizes que se afundam na noite
saberás que a tua mão viaja para a
colina dos dias sem escombros
e saberás que no berço da noite jaz a luz
drogada e ouvida pela cruz sobre quem viajaste.


*João Maimona*
*(poeta angolano, retirado
daqui)

Desligado

“Sem Título”
(Arte Makonde em tela de
Ntaluma, 2004)

Desligado*

Era bom se
amanhecesse
neste sossego
presente
sem pensar
no futuro
nem mesmo
no castigo
que o livro
evoca
era bom
se obedecesse
minha alma
sem ter que
obedecer
as estrelas
as árvores
e as raízes
era bom se
meu coração
cantasse
a canção
de liberdade
sem ter que recorrer
aos ancestrais,
ancestrais
escondidos
no embondeiro
ou talvés
neste ar impuro...
era bom
que olhasses
p’ra mim
como humano
não escolhido
mas também
humano de bem
como o infinito!


*Domi Chirongo*
*(poeta moçambicano, pseudónimo de Domingos Carlos Pedro, poema inédito, 2006)

Conto da vida real 7: Do enfermeiro Oliveira ao Lucas Lukamba

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“Pôr do Sol em África”
(Acrílico de
Andreia Barbosa de Melo, 2002)
.
Do enfermeiro Oliveira ao Lucas Lukamba*

A história, bem verdadeira e sentida, passa-se na então cidade de Nova Lisboa, em Angola, no fim da década de 60. O meu pai trabalhava na fábrica de cervejas da Cuca e era lá que eu ia ao médico, na altura o dr. Fonseca Santos. De quando em vez tinha de apanhar umas injecções. Até aqui nada de novo.
A enfermaria da Cuca era chefiada pelo Oliveira, já na altura em velhote que aliava o seu ar (era apenas isso) de poucos amigos a uma postura do estilo «aqui quem manda sou eu». E era mesmo ele que mandava.
Recordo-me que tinha pelo menos dois fillhos. Um era médico, de seu nome Freitas de Oliveira, que gozava de alguma fama em Angola, nem sempre pelos grandes sucessos clínicos. O outro era um conhecido “criador” de cães especiais. Especiais porque às vezes até os pintava para serem diferentes.
Mas, voltemos ao velho emfermeiro Oliveira.
Eu, enquanto paciente e na altura talvez com 13 ou 14 anos de idade, não gostava que fosse ele a dar-me as injecções. Já era difícil aceitar a espetadela, quanto mais ser feita por aquele rezingão de bata branca.
Uma dez vezes, e a partir daí foi remédio santo, disse-lhe perante o ar preocupado do meu pai:
- Não quero que seja você a dar-me a injecção. Quero que seja o Lucas.
O Lucas era um enfermeiro preto que, em tudo, era o oposto do Oliveira. Simpático, cordial e sempre disponível para aceitar as birras dos putos com uma enorme dose de paciência.
- Porquê o Lucas? Perguntou o Oliveira com um ar ainda mais tempestuoso do que o habitual. Antes que respondesse, acrescentou: Sabes que quem quem ensinou o Lucas a dar injecções fui eu?
- Sei, respondi.
- Então? Interrogou o Oliveira com um ar triunfal.
- Pois. O meu pai também me ensinou a jogar as damas e agora perde comigo, respondi com a lata inconsciente de quem diz o que pensa.
Daí para a frente, e não foram tão poucas quanto isso, passei a ter um enfermeiro privativo: o Lucas Lukamba.

*Orlando Castro*
*(jornalista angolano-português, conto também publicado
aqui, Outubro, 2006)

Vou Ser Senhor do Mundo

“Tempestade na Pradaria - Canadá”
(Tela em óleo de
Paiva Carvalho)

Vou Ser Senhor do Mundo*

Vou falar com o Pássaro-Rei,
vou-lhe pedir um favorzinho:
vou ver se ele me dá emprestado
sete penas brancas
para eu voar
e ir poisar no teto do mundo.

Se ele disser que sim,
estou garantido,
porque Capotona-Preta prometeu virar-me
dum passo para o outro,
em senhor da terra,
senhor das águas,
senhor dos céus,
senhor do Mundo.

Mas é se eu voar
com as sete penas brancas
e for poisar no teto do Mundo.

E porquê ele não me faz o favorzinho,
se lhe levo um punhado de milho
e se lhe digo: — Por favor?

*Jorge Pedro Barbosa*
*(poeta caboverdiano, citado
aqui)

Poema Ancestral

“Atlântida”
(Tela de
Sylvio Paiva, 2002)

Poema Ancestral*

Lembra os dias antigos
Em que cantavas a pureza
Na nudez dos teus passos e gestos
Ou dançavas na inocente vaidade
Ao som dos «babadok».
Relembra as trevas da tua inquietação
E o silêncio das tuas expectativas,
As chuvas, as memórias heróicas,
Os milagres telúricos,
Os fantasmas e os temores.
Tenta lembrar a herança milenar dos teus avós
Traduzida em sabedoria
E verdade de todos.
Recorda a festa das colheitas,
A harmonia dos teus Ritos,
A lição antiga da liberdade,
Filha da natureza.
Recorda a tua fé guerreira,
A lealdade,
E a ternura do teu lar sem limites,
Nos caminhos do inesperado
Ou no improviso da partilha definitiva.
Lembra pela última vez
Que a história da tua ancestralidade
É a história da tua Terra Mãe...

*Custódio T. Araújo*
*(poeta timorense,
daqui)

Sobre estas duras

“Complexidade”
(Tela de Ana Rita Vazquez, estampada
aqui)

Sobre estas duras*

Sobre estas duras, cavernosas fragas,
Que o marinho furor vai carcomendo,
Me estão negras paixões n'alma fervendo
Como fervem no pego as crespas vagas.

Razão feroz, o coração me indagas,
De meus erros e sombra esclarecendo,
E vás nele (ai de mim!) palpando, e vendo
De agudas ânsias venenosas chagas.

Cego a meus males, surdo a teu reclamo,
Mil objectos de horror co'a ideia eu corro,
Solto gemidos, lágrimas derramo.

Razão, de que me serve o teu socorro?
Mandas-me não amar, eu ardo, eu amo;
Dizes-me que sossegue: eu peno, eu morro.

*Manuel Maria B. du Bocage*
*(poeta satírico português)

O poeta

“Pilão”
(Acrílico sobre tela de
Tchalê Figueira, 2004)

O poeta*

Porque as flores florem e o flume flui,
e o vento varre a fúria vã das ruas,
eu desenfurno tudo quanto fui
e me corôo com meus sóis e luas.

Porque o vôo das aves é meu vôo,
e a nuvem é alcáçar que não rui,
paro a mó do pensamento onde môo
a vida, e abro no muro que me obstrui

a áurea, ástrea senda, a porta augusta.
Que me importa se a clepsidra corrói
as praças das infâncias em ruínas?

Poemas são meninos e meninas
ao sol do Pai, que tudo reconstrói.
Poeta é flor e flume em terra adusta.

*Fernando Mendes Vianna*
*(poeta brasileiro (1933-2006), poema retirado
daqui)