(©foto de Tonspi (fotógrafo angolano) retirada daqui)
Zeca o paralítico do Golungo*
Era uma hora de correr lento. Começavam os frequentadores a sair para jantar.
As mesas iam ficando vazias. Descia, então, um silêncio morno.
Àquela hora ficávamos no café como em família. Então, o paralítico, que andara arrastando-se por aqui e por ali, ganhando deste, recolhendo indiferenças e apanhando cápsulas das garrafas de cerveja para seus brinquedos, aproximava-se da nossa mesa.
Poliomielite: as pernas eram uns caniços retorcidos, que custava encarar. Ele, magrinho, vinha até nós, receoso, mansinho. Sujo-sujo, de se arrastar pelo chão, pelas ruas e pelos passeios. Receoso, porque a recepção era um enigma: por vezes corríamos com ele. Quando me dói recordá-lo! Abria, então, os olhitos em surpresa, em espanto interrogativo. Mas vinha sempre, ao fim, a rastejar, as mãos disformes em calosidades, a arrastar-se por aqui e por ali.
Éramos do bairro. Aquela hora ele vinha como a um porto final; nunca antes. E não o espectáculo da miséria, a roupita num fio, os ossos esculpidos sob a pele macilenta, que nos vinha lembrar a nossa tarde perdulária entre comidas e bebidas. Para nós, a sua presença não tinha tal poder de libelo acusatório. É que conhecíamos. Mãe. Ela, a velhinha, explorava o aleijadinho. Viria dentro em pouco, para lhe extorquir as moedas.
E se não se apresentasse o que queria e quanto esperava, havia de surrar o pobrezinho, ave implume e sem protecção nas patorras infrenes da porcaz megera. Pois a marafona - sem nunca uma meiguice para o filho - iria logo para a taberna, a dissolver as moedas em vinho, na companhia de vis amigalhaços. Era para ela, e não para o Zeca, só para ela, a nossa ira.
Não sei por quê era o Zeca que manifestávamos, a contra-senso. O filho não poderia compreender. Nem nós. Como se quiséssemos, através da nossa raiva, fazer com que o filhote verde e doentinho se voltasse contra a mãe. Ou o reconhecimento da impotência de qualquer rebeldia.
Porém, as nossas explosões de mau génio alternavam com a piedade, com a compreensão, e ele por ali ficava, comia e bebia até. Dinheiro não, que não lhe dávamos. Ele escolhia, dos tremoços, da jinguba, das batatas fritas, azeitonas, bolos, e até pão com carne. Dizia o Alcino, bochechudo, de boca atulhada, incansavelmente a mastigar, lábios em labor constante por baixo de um nariz vermelhusco, queimado pelo sol, caldeirão lá da Mutamba:
- Come, Zeca, come à vontade, que este não bebe a carcaça velha.
E ele, sempre tristinho, tímido, a ficar por ali como entre amigos.
Pobrezinho! Que infância seria a sua? Que sonhos, que fantasias passariam por aquela cabeça?
Em nós a piedade, uma certa compaixão que nada resolvia e se misturava sempre com ódio, a uma náusea, pela bruxa desavergonhada. E o Zeca a pedir um dos guardanapos de papel para embrulhar o pão e um cibito de queijo e a explicar que era "para a mãezinha".
O Alcino a tornar sarcásticos:
- mãezinha, hein? Não levas nada para aquela borrachona.
Dá-lhe trigo roxo, um bom raticidazinho, que a leve o diabo mais velho das "profundíssimas infernais"! Come, palerma! Come, jeriquinho! Mãezinha; não faltava mais nada agora? Não querem lá ver! Algum dia te deu banho?
-É sim para a minha mãezinha...
e punha nos olhos uma chamazita de convicção inabalável, na coragem do único arremedo de amor que conhecia.
O Alcino a perder a cabeça, num vozeirão, que saísse dali, se não quebrava-lhe os olhos "que até ficaria direito dos caniços".
E ele a ir-se, qual aranhiço, e, talvez, a concluir que, na realidade, os matulões são muito complicados!
Ao lembrar-me daqueles olhos em que apontavam lágrimas, enterneço-me. E lamento, atormento-me por te dado tão pouco e por não ter dado quanto o infeliz nos pedia de carinho e amor, de amizade e camaradagem.
*António Jacinto*
As mesas iam ficando vazias. Descia, então, um silêncio morno.
Àquela hora ficávamos no café como em família. Então, o paralítico, que andara arrastando-se por aqui e por ali, ganhando deste, recolhendo indiferenças e apanhando cápsulas das garrafas de cerveja para seus brinquedos, aproximava-se da nossa mesa.
Poliomielite: as pernas eram uns caniços retorcidos, que custava encarar. Ele, magrinho, vinha até nós, receoso, mansinho. Sujo-sujo, de se arrastar pelo chão, pelas ruas e pelos passeios. Receoso, porque a recepção era um enigma: por vezes corríamos com ele. Quando me dói recordá-lo! Abria, então, os olhitos em surpresa, em espanto interrogativo. Mas vinha sempre, ao fim, a rastejar, as mãos disformes em calosidades, a arrastar-se por aqui e por ali.
Éramos do bairro. Aquela hora ele vinha como a um porto final; nunca antes. E não o espectáculo da miséria, a roupita num fio, os ossos esculpidos sob a pele macilenta, que nos vinha lembrar a nossa tarde perdulária entre comidas e bebidas. Para nós, a sua presença não tinha tal poder de libelo acusatório. É que conhecíamos. Mãe. Ela, a velhinha, explorava o aleijadinho. Viria dentro em pouco, para lhe extorquir as moedas.
E se não se apresentasse o que queria e quanto esperava, havia de surrar o pobrezinho, ave implume e sem protecção nas patorras infrenes da porcaz megera. Pois a marafona - sem nunca uma meiguice para o filho - iria logo para a taberna, a dissolver as moedas em vinho, na companhia de vis amigalhaços. Era para ela, e não para o Zeca, só para ela, a nossa ira.
Não sei por quê era o Zeca que manifestávamos, a contra-senso. O filho não poderia compreender. Nem nós. Como se quiséssemos, através da nossa raiva, fazer com que o filhote verde e doentinho se voltasse contra a mãe. Ou o reconhecimento da impotência de qualquer rebeldia.
Porém, as nossas explosões de mau génio alternavam com a piedade, com a compreensão, e ele por ali ficava, comia e bebia até. Dinheiro não, que não lhe dávamos. Ele escolhia, dos tremoços, da jinguba, das batatas fritas, azeitonas, bolos, e até pão com carne. Dizia o Alcino, bochechudo, de boca atulhada, incansavelmente a mastigar, lábios em labor constante por baixo de um nariz vermelhusco, queimado pelo sol, caldeirão lá da Mutamba:
- Come, Zeca, come à vontade, que este não bebe a carcaça velha.
E ele, sempre tristinho, tímido, a ficar por ali como entre amigos.
Pobrezinho! Que infância seria a sua? Que sonhos, que fantasias passariam por aquela cabeça?
Em nós a piedade, uma certa compaixão que nada resolvia e se misturava sempre com ódio, a uma náusea, pela bruxa desavergonhada. E o Zeca a pedir um dos guardanapos de papel para embrulhar o pão e um cibito de queijo e a explicar que era "para a mãezinha".
O Alcino a tornar sarcásticos:
- mãezinha, hein? Não levas nada para aquela borrachona.
Dá-lhe trigo roxo, um bom raticidazinho, que a leve o diabo mais velho das "profundíssimas infernais"! Come, palerma! Come, jeriquinho! Mãezinha; não faltava mais nada agora? Não querem lá ver! Algum dia te deu banho?
-É sim para a minha mãezinha...
e punha nos olhos uma chamazita de convicção inabalável, na coragem do único arremedo de amor que conhecia.
O Alcino a perder a cabeça, num vozeirão, que saísse dali, se não quebrava-lhe os olhos "que até ficaria direito dos caniços".
E ele a ir-se, qual aranhiço, e, talvez, a concluir que, na realidade, os matulões são muito complicados!
Ao lembrar-me daqueles olhos em que apontavam lágrimas, enterneço-me. E lamento, atormento-me por te dado tão pouco e por não ter dado quanto o infeliz nos pedia de carinho e amor, de amizade e camaradagem.
*António Jacinto*
Sem comentários:
Enviar um comentário