O que é este Blogue?

Quando se junta uma amálgama de palavras, um conto ou um poema podem sempre emergir. A sua divulgação fará que não morram esconsos numa escura e funda gaveta. Daí que às minhas palavras quero juntar as de outros que desejem participar. Os meus trabalhos estão publicados sob o pseudónimo: "Lobitino Almeida N'gola". Nas fotos e pinturas cliquem nos nomes e acedam às fontes.

quinta-feira, fevereiro 23, 2006

Cantos do meu País

"Gritos en silencio"
(Tela de Susana Weingast, 1998)
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Cantos do meu País*

Canto as mãos que foram escravas
nas galés
corpos acorrentados a chicote
nas Américas

Canto cantos tristes
do meu País
cansado de esperar
a chuva que tarde a chegar

Canto a Pátria moribunda
que abandonou a luta
calou seus gritos
mas não domou suas esperanças

Canto as horas amargas
de silêncio profundo
cantos que vêm da raiz
de outro mundo
estes grilhões que ainda detêm
a marcha do meu País.

*Julião Soares Sousa*
*(poeta guineense; da obra “Um novo amanhecer”)

De mãos menos postas

"Meus cantos de ainda"
(Gravura para o livro; de Domingos Pinho)
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De mãos menos postas*

Angola de noite
caindo
desbenta a vigília de lelala
a cruz forasteira que ainda
da gávea joanina me guarda.

De mãos menos postas os braços
descruzam até que deitadas
a lira e a marimba em fusão
disparem.

Em ramos azuis
resplendem de música as aves.

*Fernando Alvarenga*
*(A poesia angolana do final do colonialismo; poema do livro “Meus cantos de ainda”)

segunda-feira, fevereiro 20, 2006

Que belo é o amor

"Enamorados"
(acrílico de Diego Manuel Rodriguez)

Que belo é o amor*

Que belo é saber amar
quando se ama a dois,
mas triste é acabar
e amargurar o depois.

Sem qualquer alarde
ele toca toda a gente,
é esse fogo que arde
e a dor que se sente.

Fecunda a nossa loucura
no horizonte de um beijo,
toda a gente o procura
como semente do desejo.

É a fonte de uma vida,
da morte e do além,
e na sua forte guarida
somos sempre alguém.

Vive em cada canto
e morre em cada flor,
sabe talvez ao pranto
de uma mãe com dor

Renasce em cada dia
no horizonte da verdade,
amamenta a poesia
e abençoa a saudade.

*Orlando Castro*
*(angolano-português; jornalista, ensaísta e poeta, ou seja, um homem da cultura)

O Choro de África

"África"
(desenho a tinta da china, de Malangatana, 1981)

O Choro de África*

O choro durante séculos
nos seus olhos traidores pela servidão dos homens
no desejo alimentado entre ambições de lufadas românticas
nos batuques choro de África
nos sorrisos choro de África
nos sarcasmos no trabalho de África

Sempre o choro mesmo na vossa alegria imortal
meu irmão Nguxi e amigo Mussunda
no círculo das violências
mesmo na magia poderosa da terra
e da vida jorrante das fontes e de toda a parte e de todas as almas
e das hemorragias dos ritmos das feridas de África
e mesmo na morte do sangue ao contacto com o chão
mesmo no florir aromatizado da floresta
mesmo na folha
no fruto
na agilidade da zebra
na secura do deserto
na harmonia das correntes ou no sossego dos lagos
mesmo na beleza do trabalho construtivo dos homens

o choro de séculos
inventado na servidão
em historias de dramas negros almas brancas preguiças
e espíritos infantis de África
as mentiras choros verdadeiros nas suas bocas

O choro de séculos
onde a verdade violentada se estiola no circulo de ferro
da desonesta forca
sacrificadora dos corpos cadaverizados
inimiga da vida
fechada em estreitos cérebros de maquinas de contar
na violência
na violência
na violência

O choro de África é um sintoma

Nós temos em nossas mãos outras vidas e alegrias
desmentidas nos lamentos falsos de suas bocas – por nós!

E amor
e os olhos secos.

*António Agostinho Neto*
*(poeta e político angolano (1922-1979); poema retirado da obra Sagrada Esperança)

terça-feira, fevereiro 14, 2006

Quando eu morrer

."O mar enrola n'areia"
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Quando eu morrer*

Quando eu morrer
não me dêem rosas
mas ventos.

Quero as ânsias do mar
quero beber a espuma branca
duma onda a quebrar
e vogar.

Ah, a rosa dos ventos
a correrem na ponta dos meus dedos
a correrem, a correrem sem parar.
Onda sobre onda infinita como o mar
como o mar inquieto
num jeito
de nunca mais parar.

Por isso eu quero o mar.
Morrer, ficar quieto,
não.
Oh, sentir sempre no peito
o tumulto do mundo
da vida e de mim.

E eu e o mundo.
E a vida. Oh mar,
o meu coração
fica para ti.
Para ter a ilusão
de nunca mais parar.
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*Alexandre Dáskalos*
*(poeta angolano (1924-1962), do livro “Poesias”)

Libelo

“Hands of Uruguay”
(foto de Megan Rounds, Montevido)
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Libelo*

De que mais precisa um homem senão de um pedaço de mar - e um barco com o nome da amiga, e uma linha e um anzol pra pescar?

E enquanto pescando, enquanto esperando, de que mais precisa um homem senãode suas mãos, uma pro caniço, outra pro queixo, que é para ele poder seperder no infinito, e uma garrafa de cachaça pra puxar tristeza, e um poucode pensamento pra pensar até se perder no infinito...
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De que mais precisa um homem senão de um pedaço de terra - um pedaço bemverde de terra - e uma casa, não grande, branquinha, com uma horta e ummodesto pomar; e um jardim - que um jardim é importante - carregado de florde cheirar ?

E enquanto morando, enquanto esperando, de que mais precisa um homem senãode suas mãos para mexer a terra e arranhar uns acordes de violão quando anoite se faz de luar, e uma garrafa de uísque pra puxar mistério, que casasem mistério não valor morar...
.................................
De que mais precisa um homem senão de um amigo pra ele gostar, um amigo bem seco, bem simples, desses que nem precisa falar - basta olhar - umdesses que desmereça um pouco da amizade, de um amigo pra paz e pra briga,um amigo de paz e de bar ?

E enquanto passando, enquanto esperando, de que mais precisa um homem senãode suas mãos para apertar as mãos do amigo depois das ausências, e prabater nas costas do amigo, e pra discutir com o amigo e pra servir bebida àvontade ao amigo ?...
................................
De que mais precisa um homem senão de uma mulher pra ele amar, uma mulhercom dois seios e um ventre, e uma certa expressão singular ? E enquantopensando, enquanto esperando, de que mais precisa um homem senão de umcarinho de mulher quando a tristeza o derruba, ou o destino o carrega emsua onda sem rumo ?

Sim, de que mais precisa um homem senão de suas mãos e da mulher - as únicas coisas livres que lhe restam para lutar pelo mar, pela terra, pelo amigo ...

*Vinícius de Moraes*
*(jornalista, poeta e compositor brasileiro (1913-1980)

Conto da vida real 2: "Obrigado Tia Fátima"

“Telhados de Lisboa"
(uma serigrafia de Maluda)
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Um conto da vida real “Obrigado Tia Fátima”*

Tia,
Peço a Sua indulgência, permissão e um pouco de atenção do seu precioso tempo para abrir a janela do meu coração para revelar o que me vai na alma e falar da agradável surpresa que tive de ter encontrado o Katumbila.
Julgava-o em Espanha. Pelo menos era o que diziam em Angola, mas eis que, passados quase 20 anos, encontrei-o aqui em Portugal, de saúde, bem disposto, bem apresentado e, como sempre, disciplinado, metódico e organizado.
Tia,
Palavras faltaram-me quando nos reencontramos e nos abraçamos na Praça da Figueira (Lisboa) e, seguidamente, fomos almoçar. No momento quis dizer algo especial, mas faltaram-me as palavras certas para dizer o quão importante foi este reencontro.
Tia,
Deixa-me dizer-lhe que não reencontrei apenas o Katumbila, mas também a Milocas e a Teresa, que, confesso, se preocupam uns com os outros mutuamente. Temos estado juntos nos últimos, falado de tudo um pouco. Temos rememorado sobre o passado. Temos projectado o melhor, esperando o pior e aceitando de ânimo igual o que Deus quiser. E quis Deus que há dias fossemos todos à discoteca dar um pé de dança.
Tia,
Esteja onde estiver, fique descansada (bem o merece) porque os seus frutos, os seus filhos, que se estão a revelar gente de bem, aprenderam bem a lição daquilo que de melhor a Senhora, sem esquecer a avó Emília, a tia Luísa, sabia fazer (com prazer), ajudar o seu próximo (que o diga a minha mãe).
Tia,
O Katumbila, a Milocas e a Teresa (e honro-os por isso) são daquele tipo de pessoas que, tal como a Senhora, estão sempre prontos para removerem as pedras do caminho para que ninguém possa tropeçar nelas e atentos para estenderem a mão se alguém tropeçar nesta estrada escabrosa da vida.
Tia,
O esforço feito por Si, que não foi em vão, estão a dar os seus frutos. Esteja onde estiver, sinta-se orgulhosa dos filhos que tem. Obrigado Tia Fátima pelos primos que me (nos) deu.
Que a paz de Cristo esteja consigo!

*Jorge Eurico*
*(jornalista angolano; tema base inicialmente publicado no NL)